O deserto dos tártaros

“Pelos tártaros levantaram as muralhas do forte, consomem ali grande parte da vida, pelos tártaros as sentinelas caminham noite e dia como autômatos” (O Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati).

 

“Não sou nenhum especialista nem acadêmico. Apenas um leitor atento” (p. 5). Faço minhas as palavras de Ugo Giorgetti que apresenta este romance O Deserto dos Tártaros (Dino Buzzati; tradução Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade; Editora Nova Fronteira, RJ, 2005). 

Não conhecia este autor italiano e me foi uma grata surpresa. O que mais se sobressalta é a linguagem poética: “Já pairava na sala o sentimento da noite, quando os medos saem das decrépitas paredes e a infelicidade se torna suave, quando a alma bate, orgulhosa, as asas sobre a humanidade adormecida” (p. 57). Aliada à maestria do autor em sustentar uma narrativa que pouco acontece. E faz disto uma força que me peguei, como leitora, esperando os tártaros como os soldados. Fui envolvida nas descrições exuberantes da natureza, no vasculhar das consciências dos personagens. No questionamento, presente em todas as páginas, do que é a vida, afinal. O narrador vai tecendo ao redor do leitor uma teia no balanço do vai e vem entre expectativa e realidade. No aparente contraponto entre cidade e forte. No primor da dor da existência humana.

O narrador é brilhante, brincalhão. “Um oficial – de costas não se pode saber quem seja, e poderia ser o próprio Giovanni Drogo – caminha entediado, na manhã de primavera (…)” (p. 136). Claro que é Drogo, o protagonista. ” (…) e era um dia qualquer, talvez de chuva, talvez apenas encoberto” (p. 149). “Vira-se a página, passam-se meses e anos” (p. 197).

Este clássico romance europeu foi publicado pela primeira vez em 1940. Aparentemente a história é simples, como nos explica Ugo Giorgetti: “Um jovem militar é designado para servir numa fortaleza nas montanhas, solitária, quase esquecida, que em tempos remotos foi importante defesa contra os tártaros, que costumavam chegar pelo deserto que se estendia ao longo do vale” (p. 6). A narrativa é esta espera pelos tártaros, o tédio, as esperanças e grandes sonhos… que não se concretizam. Giorgetti diz “Até que um dia nos damos conta que fizemos a aposta errada” (p. 7).

Presumo que é mais do que isto. O protagonista, Giovanni Drogo, sente-se um desterrado da própria vida. Sem lugar. “Estrangeiro”. Injustiçado por quase todos que o cercam. Quando está no forte – “que, talvez não sirva para nada (p. 21), que é “fronteira morta” (p. 20) – a cidade é o lugar dos grandes acontecimentos, ideia de felicidade. Estando na cidade: “Era um cheiro doméstico e amigo, contudo, (…) janelas fechadas, de tarefas, de limpeza matutina, de doenças, de brigas, de ratos” (p. 139); espera “por um toque de clarim” (p. 141); “pensava no forte” (p. 145). Não há lugar. Há a espera. Há a expectativa. A vida permeada pelo tempo é sem sentido. Exuberante é a natureza, ricamente descrita, como se fosse um avesso da vida pessoal. “Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca” (p. 181).

Dino Buzzati transforma deserto, tártaros, vida, tempo, natureza, forte e cidade num longo poema.

Léo

6 comentários em “O deserto dos tártaros

      1. Olá Léo. Um ótimo ano para você também.
        Concordo com sua hipótese. Os trechos que você retirou do livro corroboram para o seu argumento.
        O protagonista ficou tanto tempo longe da vida urbana e das pessoas que eram próximas a ele, que quando os está visitando se sente deslocado e anseia por voltar ao forte.
        Já no forte, é convencido tarde demais de que investiu a sua vida num sonho inútil, mesmo após ser alertado pelas vozes da experiência.

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