cabelos em neve

A senhora arcada sobre a bengala atravessa a rua em passos tímidos. A cabeça como que coberta de neve em seus cabelos curtos. Bermuda fresca, blusa fresca, próprias para uma primavera com jeito de verão escaldante. Quase final de tarde. Na mão, uma pequena sacola.

A senhora de bengala chama um nome no portão. Uma mulher também de cabelos em neve a atende. A senhora entrega a sacola com alguns limões do limoeiro de seu quintal, lamentando que eram poucos, mas eram os que tinha. Quase ao mesmo tempo pergunta para a outra se sabe que seu filho morreu. Sim, responde. Os olhos das duas marejam em lágrimas. Duas mães que compreendem a dor da perda de um filho. O que é ser mãe sem o filho?

A senhora de bengala explica sua dor exigindo explicações da vida: por quê seu filho com um filho, tão moço, recém-casado, morre, e ela, tão antiga, permanece viva? Olha para o céu querendo o retorno. O retorno de seu filho, seu companheiro, que a visitava todos os dias.

A mulher de cabelos em neve não tem nenhuma resposta. Segura a mão da senhora de bengala e a aperta forte. Fecham os olhos, as duas mulheres de cabelos em neve. Quietas. Uma energia traspassa seus corpos.

O filho não retornou. A vida não deu nenhuma explicação. No entanto, duas mulheres de cabelos em neve se compreendem. Entendimento.

A mulher volta para dentro de casa.

A senhora arcada sobre a bengala atravessa a rua em passos tímidos.

Léo

Jaque

A noite ainda não havia findado quando Jaque acorda. Sai de sua tenda e contempla o céu estrelado feito carrossel. Seu sonho palpitando em suas pálpebras: uma cidade branca. Alimenta-se, recolhe seus pertences e sua tenda, suas mercadorias: tecidos. Arruma seus três camelos. E a viagem se inicia da mesma maneira de sempre, seguindo seus instintos.

Depois de longa jornada, Jaque avista, enfim, a cidade de seus sonhos. Uma cidade branca, de escadarias brancas, muros brancos, casas brancas. As ruas ladrilhadas de pedrinhas brancas. Cidade branca sobrevoada de pipas coloridas. Adentra no passo em compasso de seu camelo. Numa pousada, repousa seus camelos cansados; a dona se encanta com seus tecidos; faz-se a troca: tecidos pelo pouso e alimento.

Descansado, Jaque percorre a cidade no entardecer. No ar algo calmo e sereno. Chega numa taberna que tem lenços de seda dependurados do teto, dançarinas seminuas, burburinhos alegres, e cerveja, muita cerveja. Jaque sente-se em casa. Mostra seus tecidos e é cercado pelas bailarinas, clientes, todos se admirando de suas mercadorias. Uma mulher se aproxima. Longos cabelos brancos trançados em fios de ouro, túnica branca com bordados em fios de ouro, sandálias. Senta-se na mesa trazendo-lhe um jarro de cerveja. Quer ouvir suas histórias. Jaque vai contando das cidades que visita, das pessoas que encontra, das noites e dos dias em viagens contínuas. Pergunta-lhe qual é a sua. Ela sorri, diz que conhece o mundo pelos relatos dos visitantes. Nunca saiu de sua aldeia. Ela é sua memória, conhece cada pedra, cada folha, cada árvore, cada pessoa e sua vivência. Só não conhece seu próprio nome e nem sua idade.

Jaque fica na cidade branca por dias. Percorre suas ruas e escadarias. Conhece seus moradores, se interessa por suas histórias, casos, risadas.

Ele e seus camelos descansados. Jaque sabe que chegou a hora de partir.

Sai como chegou: no passo do compasso de seus camelos. Numa certa distância, olha para trás num último adeus. A cidade branca já não está mais lá. A cidade branca já não existe mais.

(Este conto brotou da leitura do belo livro As Cidades Invisíveis, Italo Calvino).

Léo

Neiva

A primeira identificação que fizeram é que era menina. Quando nasceu, recebeu um quarto notadamente rosa, roupas rosa e brincos na orelha. Mas Neiva foi crescendo e gostando de todas as cores, de todas as brincadeiras e não escolhia amigos entre meninas e meninos.

Nos primeiros anos escolares, Valéria e Irineu, foram se tornando seus amigos – e logo, inseparáveis. Faziam tudo juntos, brincavam, estudavam, conversavam. Os professores até desistiram de trabalho em dupla, pois eles sempre faziam em trio. Quando os pais de Valéria lhes deram sua primeira bicicleta, os três aprenderam. E assim que todos tiveram as suas, faziam longos passeios pelo bairro. Iam até uma pedra grande que chamavam de mirante. De lá, avistavam boa parte da cidade. De lá, tudo parecia calmo e equilibrado. E trocavam confissões. E conversavam sobre assuntos diversos. E riam. Muito.

Neiva foi a primeira a menstruar. Os três participaram, pesquisaram. Quando foi a vez de Valéria, tiraram de letra. Valéria gostava dos esportes. Todos. Neiva e Irineu eram parte de sua torcida. Irineu gostava de ler, lia e contava para elas. Neiva gostava de desenhar bichos, plantas, caricaturas; porém logo foi se especializando em desenhar roupas, para meninos e meninas. Foi conhecer os tecidos. Gostava da textura.

Adolescentes, com os hormônios em turbilhão, numa festa de alguém da sala, dançaram e beberam. E se iniciaram juntos, conhecendo o corpo do outro, da outra. Assim souberam que seus destinos estavam traçados: trio.

Escolheram a mesma universidade e se mudaram de cidade morando juntos. Irineu, letras. Valéria, educação física. Neiva, moda. E frequentaram as mesmas festas, se embeberam, experimentaram drogas, turmas, corpos. Sempre juntos. Tão juntos que as famílias nem procuraram entender. Só aceitaram aquele estranho amor. No final de ano, as três famílias se reuniam e tudo era festa.

Hoje Irineu dá aula de literatura, promove rodas de leitura, sarau de poesia. Uma vez por mês saem pelas ruas do bairro recitando versos. O povo gostou tanto que tirou seus poemas das gavetas e aproveita o cordão: esbraveja seus guardados em céu aberto.

Valéria professora de educação física. Formou times de meninos e meninas. Só que ela entra no campo pra jogar junto. E xinga. E rouba. Assim todos aprenderam a chorar nas derrotas e a rir nas vitórias. Ela também ensina natação na piscina pública.

Neiva montou seu ateliê no bairro onde moram: a moda a serviço dos corpos, e não ao contrário. Desta forma, transforma pessoas comuns em modelos por uma noite em passarela improvisada.

Neiva. Valéria. Irineu. Companheiros de caminho. Nada mais.

Léo

Drica

Drica é fada. Pequena fada da floresta. Dificilmente reconhecida, pois confunde-se com uma borboleta. Suas asas multicores. Seu corpo, transpassado de luz. Viaja em noites altas. Adentra casas, apartamentos, barracos, vão de viadutos. Beija-nos delicadamente povoando sonhos.

Brinca com o general severo e o faz levitar tentando alcançar estrelas. Beija o menino com fome que acorda satisfeito. Cobre a mulher só com cobertores de aconchego. Recita versos baixinho para os de coração duro. Aquele pedido, sonhos de voo. Aquela que labuta o dia todo com calos nas mãos, viagens sem par. Salpica reinos nos olhos vibrantes dos insones. Faz o bruto virar do avesso e perceber a longa jornada das formigas. Os que não tem tempo, prestar atenção no canto da cigarra. Pássaros circulam o corpo dos que só sentem ódio. Faz da moça sonhadora, brincar com feras. O duro e sério e compenetrado homem de negócios, faz dar cambalhotas num gramado qualquer. O banqueiro se inspira e escreve poemas. Poemas de amor, imagine. A dona de casa de vida sem graça, vive mil papéis em peças de teatro.

Drica é brincalhona. Presta atenção nos musgos que povoam a Terra há milhares de anos. Os humildes musgos que descobriram como sobreviver sendo tão minúsculos. Faz vestidinhos para os vaga-lumes. Flores brotarem no cimento armado. Nas baionetas, dá um nó. Transforma o gás lacrimejante em pequenas sereias.

Drica, no amanhecer, está exausta. Ela é que dorme agora numa folha. O que será que Drica sonha? O que sonha uma “semeadora de sonhos”*?

Drica acorda com o alarme. Com a pergunta do sonho ainda ecoando em sua mente, arruma-se. É sábado de manhã e tem que ir à feira.

Gente, muita gente. Barracas, frutas, legumes, verduras, pastéis. Enquanto Drica passeia pelo turbilhão, ouve alguém gritar que foi roubado. Policiais que patrulham o lugar chegam para averiguação. Drica e uma multidão se viram para a cena. Os policiais olham para todos os lados. Drica, negra que é, fica esperta. Não dá outra: policiais se aproximam dela e querem revistar sua sacola. Drica começa a gritar: só porque sou negra sou a suspeita? Eu não roubei nada. Os policiais se agitam: se não roubou, qual o problema de abrir a sacola? O bate-boca se estende. Pessoas fazem o cerco. Começa a discussão entre todos. Alterados, uns a defendem, outros a insultam. Caos. Descontrole. Ninguém entende ninguém. Um dos policiais avança para a sacola alegando autoridade. Agitação. Palavrões. Murmúrios e berros.

De repente Drica sobe num caixote que alguém trouxe. Ela se apresenta para a multidão: somos da Trupe Vozes Ferozes. Nosso objetivo era demonstrar o racismo na vida real. E vai apresentando o elenco. As pessoas têm reações adversas. Algumas ficam bravas do engano. Algumas aplaudem a trupe. Outras xingam. O fuzuê aumenta. Policiais, que não são atores, aproximam-se. O alarde é tanto que, sem saberem o quê fazer, levam todos para a delegacia.

O delegado, puto da vida. A sala abarrotada de clientes da feira, de pessoas que só estavam passando, do elenco de Vozes Ferozes. Como distinguir elenco, figurante, plateia? Todos falando ao mesmo tempo, exigindo direitos, justiça, sabe-se lá mais o quê. O delegado esmurra a mesa exigindo silêncio. Ele se vira e abre a porta do armário. Pânico na multidão.

O delegado se volta com uma braçada de cravos vermelhos. E os distribuem para todos, sem distinção.

Drica, meio atônita, avista algo no ombro do delegado. Aproxima-se. Parece uma borboleta de asas multicores, de corpinho translúcido. Drica jura que a viu lhe dando uma piscadela.

Drica já não sabia se era uma atriz sonhando que era fada, ou se era uma fada sonhando que era uma atriz **.

*Estevamweb, blog sabedoria do amor, num comentário em Augusto.

**Lembrando de O conto do sábio chinês, Raul Seixas: ” (…) se ele era um sábio chinês/ que sonhou que era uma borboleta/ ou se era uma borboleta sonhando/ que era um sábio chinês”.

Léo

Pai Contra Mãe

“Não é parar a roda. É quebrar a roda” ( Daenerys, Game of Thrones).

Em novembro de 2019 visitei o museu da cidade de Amparo-SP. Estavam expostos os instrumentos de tortura usados na escravidão. Grilhões, correntes. Pesados. Ferros fortes e negros como os negros aprisionados. Esta cena me voltou em lembrança lendo o conto de Machado de Assis, Pai Contra Mãe (Contos Escolhidos, Machado de Assis, Editora Martin Claret, SP, 2012).

“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais” (p. 303). O narrador, através do ofício e descrição dos instrumentos, vai nos assentando na amplidão da escravidão: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”. O tom sarcástico característico de Machado impera no conto todo. Sarcasmo e dor.

Do panorama, lança luz em um dos ofícios: “Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão”. “Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo” (p. 304). Ofício, que ninguém se metia por estudo; a pobreza, a inaptidão, o acaso, “e alguma vez o gosto de servir (…) davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem”.

Cândido Neves é a particularização, é a personagem que nos guia neste espetáculo grotesco e cruel. Seu ofício, capturar negro fugido. Não aguentava emprego, não suportava o tempo para aprender. Pobre, se casa com Clara, também pobre, órfã. “Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas (…)” (p. 305). Em pobreza profunda vem a gravidez. “A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer” (p. 308). Quando nasce o menino, enche os pais de alegria e… dor. Sem casa para morar, sem dinheiro para o aluguel, o conselho vem da tia de Clara: a Roda dos enjeitados. “Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais (…)”.

Prestes a consumar o conselho, Cândido com seu filho no colo, rumo à Roda dos enjeitados com uma dor dilacerante, se vê frente a frente com uma escrava fugida. Grávida. Pai contra mãe.

No conto há um vencedor. Vitória pífia, é certo. Vitória como denúncia. Cândido Neves, ao executar seu ofício, torna-se o próprio instrumento da escravidão. O sujeito se iguala ao objeto, isto é, o sujeito é o objeto. O homem como ferramenta para garantir a ordem. Porém é a briga entre os debaixo da pirâmide. Como escolher entre o pai pobre e a escrava grávida? Qual filho deveria vingar?

Ou poderia ter outro desfecho. Que este pai e esta mãe, que este pobre miserável e esta escrava, descessem do ringue imposto, parassem de se digladiarem. Que o olhar focado entre ambos se voltassem ao verdadeiro inimigo: o senhor de escravos, a escravidão.

Que quebrassem a roda!

Léo

Valquíria

O homem de cabelos longos amarrados, de barbas longas, deu sua tarefa por terminada. Amanhecia. Conferiu tudo no farol e trancou a porta. Caminhou pela praia na direção de sua morada. Viu um corpo. Aproximou-se. Uma mulher de cabelos até os ombros, roupas rasgadas. O homem de cabelos longos percebeu que ela ainda respirava. Limpou a areia dos seus cabelos, do rosto. Estava desfalecida. Carregou-a no colo até sua casa. Chegou ofegante e a depositou numa cama sobressalente. Tirou suas roupas molhadas, a limpou com uma toalha, e como ela estava febril, a velou boa parte da manhã com compressas geladas. Ela delirava e falava confusões.

No final da tarde pediu para a vizinha cuidar dela. Ele iria executar seu trabalho: iluminar os navegantes.

De manhã, quando voltou, ela adormecia tranquila. Quando acordou se percebeu sem memória, ao ser indagada pelo homem de cabelos longos. Respondeu como Hilda Hilst, a poeta: “nem de mim mesma sei”. Porém se sentia confortável naquela casa. O homem do farol era de poucas palavras, acostumado ao silêncio de sua vida solitária. Ela percorreu a ilha, conheceu seus contornos, bosque, fazia longas caminhadas. Aos poucos foi dando conta dos moradores, acompanhava a chegada dos pescadores. Todos a acolheram sem ciência de sua vida pregressa: a aceitaram com um presente do mar.

Ela foi armando seus dias e nem se importava mais em não carregar lembranças. Numa tarde ao ver o homem saído do banho com seus longos cabelos soltos, pediu que se sentasse numa cadeira. Penteou longamente sua cabeleira. Procurou tesoura. E assim como Jason Bourne viu que sabia lutar, ela viu que sabia cortar. Aparou a barba longa, cortou alguns dedos dos longos cabelos do homem do farol. Gostou. Foi um encontro consigo mesma. Na manhã seguinte cortou seus próprios cabelos. A vizinha presenciando o ato, também quis. Ela pôs uma cadeira debaixo da árvore frondosa e esculpiu os cabelos da vizinha, dos seus filhos, do seu marido. Aos poucos atendia todo o povoado.

Eles se sentiam bonitos. E como ela não tinha nome, lhes deram um: Valquíria. Por que? Sei não.

Léo

Cecília

“O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta” Machado de Assis, Diplomático.

Cecília, assistente social, acabou de atender Selma, uma andarilha. Percebeu que os papéis tinham se invertido. Foi Cecília que contou sua história. Selma estava em outra dimensão, onde as perguntas de praxe como nome e para onde vai, são formais e sem sentido.

Há muito tempo Cecília vem se questionando sobre seu trabalho. Atende as pessoas num final de linha: já estão na margem, já abandonaram a sociedade ou foram abandonadas por ela. Chegam tão machucadas e Cecília oferece o que é possível: band aid. Paliativos. Quando estudou e se formou sua vontade era a de transformar os doentes de alma em seres humanos curados. O abrigo da prefeitura da cidade viu como uma boa alternativa. Atender decentemente as pessoas era sua meta. Aos poucos foi percebendo que seria algo anterior que deveria ser mudado. Quando chegam, já estão surrados pela vida. São histórias de dor e abandono. Perda de emprego, perda de identidade, perda de vontade de aturar uma sociedade implicante, cheia de regras absurdas, cobranças e mais cobranças. A felicidade se distanciando como cenoura na frente do cavalo.

Compreendeu que seria necessário parar a engrenagem, este moedor de gente, esta fábrica de infelizes. Mas como se faz isto? Cecília não tinha respostas. Ao ver Selma, sentiu inveja: ela já não questionava nada, só caminhava.

“Cecília, chegaram mais alguns”, avisou a atendente.

P.S. Cecília é a assistente social do meu conto Selma. Ela pediu voz.

Léo

Augusto

Despertou na madrugada com um leve incômodo. Comichão no tornozelo. Sonolento voltou ao sono. De manhã abriu os olhos e sorriu lembrando de seu sonho: era flor. Ainda na penumbra caminhou até o banheiro, se olhou no espelho. Sentia-se diferente. Acendeu a luz. Seu rosto parecia tatuado. Esfregou os olhos. Se olhou novamente. Foi até o armário do quarto e abriu a porta que tinha um espelho maior. Seu corpo todo tatuado. Passou a mão. Escancarou as janelas para se ver melhor: sob sua pele ia deslizando galhos, ramos, rumo à cabeça. Pensou que ainda estava sonhando. Andou pela casa, acendeu um cigarro, tomou um café. Voltou ao espelho. Os ramos se alastrando por seu corpo. Percebeu que junto aos seus cabelos longos, tinham brotos e flores miúdas. Olhou pela janela e o mundo continuava igual. Mas viu pequenas abelhas, borboletas, colibris, se aproximando, rodopiando ao redor de seu corpo. Na mão, uma joaninha passeava devagar.

Augusto não teve mais dúvidas. Estava num mundo flutuante: humano e semente.

Sorriu.

Léo

Ângela

Sofia foi casada por sete anos. Marido truculento, denunciado por vários boletins de ocorrência, teve um ápice ao ser confrontado por Sofia. Desconfiada de um caso dele com uma amiga, ganhou explicações em forma de socos, murros e pontapés. Foi a gota d’água: fim do casamento e mais um B.O.

O ex-marido inconformado com a ordem de restrição, gritava palavrões com cem metros de distância, e ameaças e mais ameaças. A casa de Sofia deixou de ser um refúgio para ser uma zona de guerra. Os vizinhos alertados sempre chamavam a polícia. O ex-marido ia embora e o ar permanecia pesado. Sofia acompanhava as notícias de mais e mais feminicídios. De madrugada acordava em prantos depois de pesadelos onde era morta de várias maneiras. Numa noite acordou gritando vendo claramente seu ex-marido empunhando uma faca afiada. Novo sonho sombrio. Trabalhou o dia todo com a imagem no pensamento.

Nos meses seguintes, entre bravatas e intimidações, fez diversos saques pequenos em sua conta corrente, de difícil rastreamento. Comprou e pagou em dinheiro, uma mochila lilás, uma boina, óculos escuros, tinta para cabelos louro prateado, roupas, uma faca bem afiada, e uma nova identidade. Escondeu tudo no fundo do quintal, longe da câmera de segurança que tinha instalado na porta da frente. Estudou minuciosamente uma rota de fuga.

Num começo de noite o ex-marido bêbado esmurra a porta soltando palavrões. Para sua surpresa a porta está destrancada. Entra na casa escura gritando por Sofia. A polícia recebe um telefonema anônimo denunciando um endereço conhecido.

No dia seguinte, por volta das nove horas da manhã, numa cidade distante, uma mulher de óculos escuros, cabelos louro prateado quase escondidos numa boina, lê uma notícia numa banca de jornal: um ex-marido encontrado em casa da ex-mulher, gotas de sangue espalhadas, uma faca afiada escondida num quarto de despejo. No vídeo da câmera de segurança, a polícia só vê uma mulher entrando e depois o ex-marido. Que foi preso suspeito de feminicídio.

Ângela sorri massageando a mão enfaixada.

Léo

Hermano

O corpo está estendido no chão da cozinha. O assassinato, enfim, aconteceu. Hermano se verifica: sem sentimento de culpa, sem remorsos. Só resta uma raiva pelo corpo ainda resistir, os braços gesticulando como tentáculos querendo se agarrar em algo. Morte prevista pelos astros, pelas cartomantes. E o corpo ainda teimando. Ninguém sentiria a falta daquela vida sem graça, banal. Quem se perguntaria por alguém tão pálido, opaco, que se perde em qualquer multidão? Sim, o crime foi perfeito.

Hermano senta-se de frente da porta da cozinha. Vê pequenos pássaros buscando comida no chão. A grama salpicada pela chuva fina que caia. O cheiro de terra molhada subindo pelos ares.

Ele se olha no espelho: nenhum arroubo de arrependimento. Os últimos anos tinham sido gastos na elaboração do crime. Hermano sabia que teria de fazer.

Na cozinha, o assassinato se consumava. Seu velho eu estava morto. Seu velho eu não existia mais.

Léo