Drica é fada. Pequena fada da floresta. Dificilmente reconhecida, pois confunde-se com uma borboleta. Suas asas multicores. Seu corpo, transpassado de luz. Viaja em noites altas. Adentra casas, apartamentos, barracos, vão de viadutos. Beija-nos delicadamente povoando sonhos.
Brinca com o general severo e o faz levitar tentando alcançar estrelas. Beija o menino com fome que acorda satisfeito. Cobre a mulher só com cobertores de aconchego. Recita versos baixinho para os de coração duro. Aquele pedido, sonhos de voo. Aquela que labuta o dia todo com calos nas mãos, viagens sem par. Salpica reinos nos olhos vibrantes dos insones. Faz o bruto virar do avesso e perceber a longa jornada das formigas. Os que não tem tempo, prestar atenção no canto da cigarra. Pássaros circulam o corpo dos que só sentem ódio. Faz da moça sonhadora, brincar com feras. O duro e sério e compenetrado homem de negócios, faz dar cambalhotas num gramado qualquer. O banqueiro se inspira e escreve poemas. Poemas de amor, imagine. A dona de casa de vida sem graça, vive mil papéis em peças de teatro.
Drica é brincalhona. Presta atenção nos musgos que povoam a Terra há milhares de anos. Os humildes musgos que descobriram como sobreviver sendo tão minúsculos. Faz vestidinhos para os vaga-lumes. Flores brotarem no cimento armado. Nas baionetas, dá um nó. Transforma o gás lacrimejante em pequenas sereias.
Drica, no amanhecer, está exausta. Ela é que dorme agora numa folha. O que será que Drica sonha? O que sonha uma “semeadora de sonhos”*?
Drica acorda com o alarme. Com a pergunta do sonho ainda ecoando em sua mente, arruma-se. É sábado de manhã e tem que ir à feira.
Gente, muita gente. Barracas, frutas, legumes, verduras, pastéis. Enquanto Drica passeia pelo turbilhão, ouve alguém gritar que foi roubado. Policiais que patrulham o lugar chegam para averiguação. Drica e uma multidão se viram para a cena. Os policiais olham para todos os lados. Drica, negra que é, fica esperta. Não dá outra: policiais se aproximam dela e querem revistar sua sacola. Drica começa a gritar: só porque sou negra sou a suspeita? Eu não roubei nada. Os policiais se agitam: se não roubou, qual o problema de abrir a sacola? O bate-boca se estende. Pessoas fazem o cerco. Começa a discussão entre todos. Alterados, uns a defendem, outros a insultam. Caos. Descontrole. Ninguém entende ninguém. Um dos policiais avança para a sacola alegando autoridade. Agitação. Palavrões. Murmúrios e berros.
De repente Drica sobe num caixote que alguém trouxe. Ela se apresenta para a multidão: somos da Trupe Vozes Ferozes. Nosso objetivo era demonstrar o racismo na vida real. E vai apresentando o elenco. As pessoas têm reações adversas. Algumas ficam bravas do engano. Algumas aplaudem a trupe. Outras xingam. O fuzuê aumenta. Policiais, que não são atores, aproximam-se. O alarde é tanto que, sem saberem o quê fazer, levam todos para a delegacia.
O delegado, puto da vida. A sala abarrotada de clientes da feira, de pessoas que só estavam passando, do elenco de Vozes Ferozes. Como distinguir elenco, figurante, plateia? Todos falando ao mesmo tempo, exigindo direitos, justiça, sabe-se lá mais o quê. O delegado esmurra a mesa exigindo silêncio. Ele se vira e abre a porta do armário. Pânico na multidão.
O delegado se volta com uma braçada de cravos vermelhos. E os distribuem para todos, sem distinção.
Drica, meio atônita, avista algo no ombro do delegado. Aproxima-se. Parece uma borboleta de asas multicores, de corpinho translúcido. Drica jura que a viu lhe dando uma piscadela.
Drica já não sabia se era uma atriz sonhando que era fada, ou se era uma fada sonhando que era uma atriz **.
*Estevamweb, blog sabedoria do amor, num comentário em Augusto.
**Lembrando de O conto do sábio chinês, Raul Seixas: ” (…) se ele era um sábio chinês/ que sonhou que era uma borboleta/ ou se era uma borboleta sonhando/ que era um sábio chinês”.
Léo
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