Sim, Dançar Tango Em Porto Alegre!

“Queria conhecer outras gentes além de um gambá e de um bugre, queria conhecer outras mulheres, mamar noutras tetas e, enfim, saber de que trastes se compunha o mundaréu que começava más allá das canchas de osso e dos bolichos da Vila do Bororé”. Sergio Faraco, Dois Guaxos.

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Capa do livro

Foi minha filha que me apresentou Dançar Tango Em Porto Alegre, de Sergio Faraco. Livro de contos publicado em 1998. Sedução à primeira vista. E os convido a passear por rios, suas beiradas, chalanas, bares de periferia de cidades, regiões fronteiriças, interior do Rio Grande do Sul. Conhecer palavras novas como guaxo, chibeiros, palavras que entrelaçam português e espanhol. A linguagem é bruta e poética. Um mundo novo é descortinado. Povoado de gentes das margens, marginalizadas pela vida, desprezadas, muitas vezes, pela vida literária. Sergio Faraco joga um facho de luz e a gente se sente translúcida. “Quem são ustedes?”.

Dois Guaxos abre o mundaréu de Faraco. “Entardecia, o lusco-fusco cheirando a fruta, a estrume fresco, a terra mijada”. Descubro que guaxo é designação dada pelos ervateiros às mudas da erva-mate. Também é aquele que não tem mãe. Como as personagens do conto: desmamados, solitários, perdidos. A solidão de Maninho só perde para sua força em romper com seu mundo conhecido, triste, doente. “Essa tarde anoitecera, a noite já envelhecia, entrava a madrugada nos mangueirões do céu (…)”. “Um tirão até Itaqui, e depois… quem saberia?”.

Travessia é a luta dos miseráveis pela sobrevivência, os chibeiros – indivíduos que, na fronteira, dedicam-se ao contrabando de pequeno porte – dando um jeito. “Fim de ano, véspera de Natal, uma boa travessia, naquela altura, ia garantir o sustento até janeiro”. Perdas. “- Essa é a vida – repetiu Tio Joca”.

Noite De Matar Um Homem. “Parecia mentira que um puava como aquele pudesse assoprar tanto sentimento, e o mato em volta, com seu silêncio enganador, alçava a musiquinha como o seu mais novo mistério”. Matar não é fácil. É necessidade. Sobrevivência. “Vomitei e vomitei de novo e já vinha outra ânsia, como se minha alma quisesse expulsar do corpo não apenas a comida velha, os sucos, também aquela noite aporreada (…)”.

Guapear Com Frangos. Neste mundo dos esquecidos por Deus, pobres-diabos, há ética. “Quando o tropeiro Guido Sarasua morreu afogado, aquele López foi um dos que tresnoitaram o Ibicuí rio abaixo e rio acima, na obrigação de não deixar corpo de homem sem velório”. A luta com o morto e a ética: laçam o corpo do rio, corpo inchado, verde, “tão decomposto que o filho do chacareiro, a vinte braças, vomitou três vezes”. López “era um pobre-diabo como todos os tropeiros, chibeiros, pescadores e ladrões de gado daquela fronteira triste, mas jamais faltara à palavra empenhada”. No trajeto do cumprimento da missão, o incumbido da tarefa – entre vômitos e enjoos – disputa o morto com bichos, moscas, corvos, procurando o quê comer. E o final do conto é a compreensão.

O Voo Da Garça-Pequena. “O rio macio e suspiroso, o cheiro do barro, o verde úmido e o silêncio soltando o pensamento…”. O ponto de vista é de Lopes que faz entregas. Com vontade de “dar um galope” encontra Maria Rita, “metida a ideias”. Separada a pouco de um marido violento, “era nova na casa”. Queria um rádio: “Com o rádio a gente fica sabendo do que acontece no mundo, em Porto Alegre, a gente pode ter ideias…”. Lopes “tirou a campeira, desafivelou o cinto, sentindo que alguma coisa estava errada, torta, emborquilhada, alguma coisa que ele não sabia o que era…”. “…e de um ninho de gravetos, na moita de um sarandi, alçou voo a mais graciosa de todas as aves do banhado, a garça-pequena com seu véu de noiva (…) e era o voo mais tristonho e mais bonito”.

Sesmarias Do Urutau Mugidor fala de um homem que “(…) carregava livros porque gostava deles e gostava tanto que de vez em quando escrevia algum”. O senhor que o acolhe, “apertou os olhos, interessado. – É preciso uma cabeça e tanto. Aquele mundaréu de letrinha, uma agarrada na outra…”. Dois mundos que se encontram e se olham e se percebem e de certa maneira mui linda. “Pensou, talvez, no escritor que eu era, no homem de cabeça grande, um sujeito assim jamais fugiria com sua menina”. Além do pai de Maria, tinha o urutau, ave noturna dos matos do Rio Grande, cujo lastimoso canto se assemelha a vozes humanas gritando ao longe, e é considerado protetor das virgens contra as seduções, ensina o editor. Porém… “Estava interessado nela, queria saber alguma coisa a seu respeito, compreender aquele momento em que, como alucinada, me cravara os olhos”. Nesta dança de mundos diferentes ao som do urutau… só lendo mesmo!

O livro está dividido em três partes. Esta primeira é desse mundo violento, bruto, profundo, iletrado com outros saberes, “compacto não dilacerado pela cidade”. E pelas frestas vamos percebendo sonhos “ganhando a estrada pelas frestas da janela (…)”.

O arremate: “E adiantava falar? Choramingar que entre el sueño y la verdad o trem da vida cobrava uma passagem mui salgada? Isso o meu tio, na idade dele, estava podre de saber”.

 

 Segunda Parte

 

A segunda parte do livro é a primeira parte da vida. Outra parte do mundo. Porto Alegre está mais próxima. Visão de garotos, adolescentes, das primeiras dores, descobertas.

A Língua Do Cão Chinês. O ato do amor dos pais percebido pelos olhos de uma criança: “(…) aquilo era um brinquedo que eles tinham inventado”. E o garoto sente o gosto da solidão.

Idolatria do filho pelo pai, diamante bruto. Idolatra de mansinho, sem se mostrar: “A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso?”.

Outro Brinde Para Alice. A tristeza perante o inexorável. “Prometia-se o milagre e nem sempre a medicina da capital tinha algum no estoque”.

Guerras Greco-Pérsicas. Dois adolescentes estudando História, “no dia seguinte começamos a lutar com os gregos”. Descobrindo ao mesmo tempo a Grécia e o corpo. “Um país montanhoso, a Grécia, precioso o seu litoral cheio de enseadas, cabos, ilhas. (…) Ainda na primeira semana descobri que Claudia usava sutiã (…). Uma surpresa atrás da outra, pois descobri também, no susto, como Claudia era bonita”. Dois numa guerra Greco-Pérsica deliciosa!

Majestic Hotel é a lembrança de um garoto que ganhou um soldadinho de chumbo em uma viagem a Porto Alegre. Lembrança pesada, perigosa, ardilosa. Certa disputa da mãe com um “como um general”: “Deitado, esperava, e ouvia vozes no corredor e portas que batiam (…). E tinha medo, fome, (…) e ela não voltava. (…). ‘Volta, mamãe’”.

Não Chore, Papai. Aventura de um garoto, sua vontade de mundo, sua bicicleta. Castigo. “Quem, em menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os jardins da Babilônia (…), não acha em seu coração lugar para o rancor”.

 

Terceira Parte

 

O mundo subterrâneo, além das classes sociais, urbano. Pobres, miseráveis, à margem da cidade, solitários, suas vidas sem perspectivas, luta pela sobrevivência, e o sexo fazendo às vezes de sopro de vida. E vão se encontrando no Café Paris; tem uma dama no Bar Nevada; na garoa, um aceno; e tem um tempo do Trio Los Panchos; num verdadeiro conto de inverno.

Mas há beleza nisso. O facho de luz de Faraco os ilumina inteiros. São vidas trançadas pela dor, mas se procuram, se ajudam; ajuda entre iguais. Insistem, insistindo na sobrevida. Não arredam pé, mesmo que a vida quase nada lhes ofereçam; mesmo que o mundo lhes neguem quase tudo. E lutam: “O tempo a maltratara, mas ela não se entregava e era bonita, era muito bonita assim, lutando (…)”. Vão se aconchegando, se acalentando. Corpos borrados pelo tédio. Não é amor. Mas, “sempre, mas sempre mesmo, seria uma vitória”.

Como dois solitários sofridos que se encontram num vagão de trem. O texto é ligeiro, forte, intenso, delicioso, como num ato sexual. Encontram-se e se reconhecem e se compreendem. “E não podia conceber o dia seguinte sem aquela mulher que, com suas maluquices, dera um sopro de vida aos meus dias sem sabor de velho precoce”. E a gente torcendo para que dancem um tango em Porto Alegre.

Este livro, “– Fica com a senhora, como um recuerdo meu”.

Léo