Casa vazia

“É difícil dizer que o mundo em que vivemos é uma realidade ou um sonho”
“It’s hard to tell that the world we live in is either a reality or a drem”
Kim Ki-duk, Casa Vazia.

 

Casa vazia… ocupada por um homem bonito, olhos negros, profundos, de uma fúria… fúria controlada. O protagonista de Casa Vazia, filme escrito e dirigido por Kim Ki-duk (Coreia do Sul, 2004), é um motoqueiro que vive margeando a sociedade. De dia cola cartazes de propaganda em casas, apartamentos. De noite, ocupa uma casa ou apartamento de moradores que não tiraram os cartazes da porta denunciando suas ausências. Ele entra, conhece o lugar, usa suas roupas, sua pasta de dentes, faz comida com que encontra na geladeira, dorme em suas camas,usufruindo do lugar não ocupado. De manhã, lava roupas, limpa a casa, não rouba nada, e não deixa vestígios, somente pequenos consertos que faz em relógios, aparelhos de som, balança. E assim prossegue sua rotina: ocupação invisível.

Certa noite adentra uma casa que julga vazia. Vê álbum de foto da moradora nua, seu retrato na parede, e vai se apaixonando. Mas a moradora está lá, invisível para ele, com marcas em seu rosto da violência do marido. Ela o acompanha pelos cômodos sem se deixar notar, sem se amedrontar. Curiosa. Até que se vêem, sem palavras. Ela vai para banheira, ele põe uma música – linda. Ele escolhe uma roupa para ela, ela se veste. Não se tocam, não se falam. Se apaixonam e ela abandona o marido abusivo.

Os dois ocupam as casas. Juntos na rotina invisível. Ela lava as roupas, ele cozinha. Há compreensão.

“Mas uma boa trama tem lá seus conflitos”, disse alguém. Na adversidade se separam. O marido a usurpa de novo. Ele é preso e vítima de um policial truculento. Eles sofrem a ausência um do outro. Ela se nega ao marido. Ele se aperfeiçoa na invisibilidade.

Ao final só são visíveis um para o outro. Invisíveis para o mundo.

Belo filme. Violência e poesia se permeando; uma entrelaçada na outra. Poético.

Léo

Paterson

“— O Senhor também é poeta?
— Não. Sou só um motorista de ônibus.
— Um motorista de ônibus… Isso é muito poético” Paterson.

 

Escrito e dirigido por Jim Jarmusch (2017, USA), Paterson é o nome do filme, da cidade e do protagonista: um motorista de ônibus poeta, um poeta motorista de ônibus. Começa às seis e pouco da manhã de uma segunda-feira e nos transporta para uma semana qualquer do cotidiano de Paterson. No café da manhã olha atentamente uma caixa de fósforo, transformada em poesia no trajeto de casa até o trabalho.

Como motorista, nos conduz pela cidade, oferecendo-a: suas ruas, seus moradores. Atento aos passageiros e suas histórias, conversas banais de trabalhadores e seus sonhos; relatos de moradores famosos como boxeador Rubin Carter, conhecido como Hurricane; o italiano Gaetano Bresci, fundador de um jornal anarquista. 

De noite, num passeio com o cachorro, para sempre num bar, toma uma cerveja, vê a parede da fama – famosos da cidade que o dono vai apresentando e contando suas histórias. Bar recheado de figuras e aventuras. E outro dia chega.

Sua companheira é intensa – numa oposição harmoniosa – vai pintando cortinas da casa, tapetes, copos, num preto e branco e muitos círculos. Transforma vestidos, costura, toca violão, faz cupcakes… E o incentiva a mostrar os poemas do seu caderno secreto: “Eles deviam pertencer ao mundo”.

Paterson vê poemas escorrendo pela realidade. Ou transforma o real em poemas? Ou entrelaça vida e poesia? Poemas sobre caixa de fósforos; moléculas se deslocando; as três dimensões e o tempo como a quarta, e os que afirmam que são mais, seis, sete… e ele olha para o copo de cerveja e fica contente.  Assim também é o filme de Jarmusch: muitos gêmeos e gêmeas, espelhos, sombras, cenas poéticas. Numa harmonia que encanta.

Octavio Paz, Signos em Rotação, diz que “a poesia é revelação da condição humana e consagração de uma experiência histórica concreta” (Editora Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 74).  E haverá um tempo em que “a poesia não mais encarnará na palavra e sim na vida”.

Paterson é um ótimo ensaio.   

“A água cai
A água cai do ar brilhante
Ela cai como fios de cabelos (…)
A maior parte das pessoas a chamam de chuva”
Uma personagem do filme.

Léo

O Silêncio do Mar

“O que eu gosto do mar… é seu silêncio. Não falo da ressaca, de suas ondas, mas sim do que está oculto. Do que percebemos. O mar é silencioso. E temos que saber escutar” O Silêncio do Mar, filme.

 

França, 1941. Vilarejo litorâneo ocupado pelos nazistas. Jeanne, professora de piano, mora com seu avô. O quarto de sua casa, antes ocupado pelos pais já mortos, é requisitado pelos alemães. Este é o palco de O Silêncio do Mar, filme dirigido por Pierre Boutron, de 2004.

Numa cena muito bem construída, Jeanne ao piano junto com seu avô na sala, a câmera se desloca para as botas do invasor saindo do carro. Passos lentos ao som de Bach, ele adentra a casa – uma França abreviada. Ele se apresenta: “Sinto muito. Minha presença é necessária. Se pudesse, evitaria”. Eles, invadidos, em silêncio. Resistência. O invasor é gentil. Contradição. “Graças a Deus parece decente”, comenta o avô em confissão para a neta. 

Num ambiente de saques alemães, atentados franceses, escassez de alimentos, perseguições, todas as noites, o capitão entra na sala e questiona a própria guerra. “Sempre gostei da França”. Ele conta sua história. É militar por tradição da família. Porém seu talento é para a música. É compositor. Lamenta as perdas tanto numa pátria como na outra. “Enquanto ele estiver aqui não tocarei”, diz Jeanne ao seu avô. Ele lembra a grandiosidade da literatura francesa e a da música alemã. Eles, em silêncio.

O amor, desconhecendo guerras e fronteiras, vai brotando entre os inimigos que se respeitam. Contudo não abandonam suas trincheiras. O amor resplandece além das barricadas. A atmosfera é do trágico. Olham-se. Compreendem-se. Amam-se. Conhecem o absurdo. Ele quase toca seu ombro. Ela vasculha seu quarto, sente seu cheiro em suas roupas, travesseiro, cama. Suas mãos quase se encontram. “Eu queria te dizer uma coisa…” ele diz para ela, interrompido pelo avô. A força dos olhares. A força do não dito. A força de lágrimas que correm livres num horizonte bélico.

“Não há mais esperança. O que devo fazer? A única resposta é ser leal”. O capitão sente a guerra. Eles a compreendem profundamente. O movimento de Resistência atua. Final surpreendente.

A guerra os une. A guerra os separa.

Léo

Bagdad Café

“Preciso conversar com Brenda” (filme Bagdad Café, Percy Adlon, 1987).

 

Brenda, negra, esguia, desgrenhada, dona de Bagdad Café — posto-motel nos arredores de Las Vegas. Brenda tem um filho moço que tem um filho bebê. Pianista. Brenda tem uma filha moça, alegre e divertida. Brenda tem um marido folgado. Nas primeiras cenas do filme, rompe com ele. Brenda, áspera, solitária, se vê responsável por tudo, sem ajuda.

Em Bagdad, quartos. Uma tatuadora, linda, ocupa um deles. Não gosta de harmonia. Um pintor, que fazia cenários em Hollywood, ocupa um trailer. Um jovem mochileiro pede para acampar. Gosta de bumerangue. Um índio, atendente.

Deserto. Estrada. Pó. Poeira. Caminhões.

Jasmim, alemã da região de Bavária, branca, corpulenta, olhos verdes. No início do filme, desiste de seu marido rabugento. Jasmim guarda em si a luz.

Jasmim e Brenda – encontro. Transformam o pó em magia. Revigoram o lugar. Unem seres solitários e desérticos. Artistas.

Belo filme deste diretor alemão. Bela fotografia em que o deserto se amálgama com a vida das personagens. Belas atrizes, CCH Pounder, Brenda, e Marianne Sägebrecht, Jasmim. Roteiro original: uma sociedade tão fechada como a norte-americana, invadida. Bela trilha sonora: Calling You, música tema, composta por Bob Telson, e cantada por Jevetta Steele.

Sim, “eu estou te chamando/ não consegue me ouvir?”.

Léo

bagdad café
Imagem do filme. Foto divulgação.

Sem Rastros: consequências de uma guerra!

“A guerra dará vazão a todos os instintos, a todas as formas de bestialidade… (…) a guerra joga de alto a baixo toda a existência” Minha Vida, Leon Trotsky.

 

 Sem Rastros é um filme norte-americano dirigido por Debra Granick de 2018. É a mesma diretora de Inverno da Alma, 2010, outro filme muito bonito. Will (Ben Foster) e sua filha de treze anos, Tom (Thomasin H. Mckemzie) vivem numa floresta que é parque público em Portland. Vivem rusticamente e escondidos. Ele, um veterano de guerra traumatizado.

A força do filme está nos poucos dados apresentados. Você vai descobrindo aos poucos. Aliada aos atores excelentes, ótima fotografia e boa trilha sonora. Os olhares das personagens são sedutores, fortes. O medo está no olhar e nos gestos do pai. Tom, olhar atento, de busca, inquieto. Ele a ensina sobrevivência, ler, escrever, jogar xadrez. Uma relação harmoniosa. São cúmplices. Todo dia uma trilha nova. Não deixar rastros.

Porém, um incidente os denuncia. A polícia e a Assistência Social – em nome da mesma sociedade que transformou Will em veterano e traumatizado – exigem suas remoções: “É ilegal morar numa área pública”, sentenciam. Pai e filha são separados. Submetidos à testes absurdos. “Eles não entendem que a minha casa era lá”, diz Tom. O serviço social constata que Tom está à frente dos que vão à escola regularmente: “você a criou bem”. Apontam como saída Forest Park – plantam e cortam pinheiros de natal para venda (???); dão-lhe casa, roupas, sapatos; querem matricular a filha numa escola convencional. Insistem para que participem de um culto religioso para se integrarem. A religião ocupando o papel do Estado oferecendo atividades socializantes e culturais. “Agora está tudo diferente”, diz Tom.

A assistente social lhes advertem: “É importante fazer tudo certo para manter a independência de vocês”. Seria cômico se não fosse trágico. Cortar árvores para quem vivia numa floresta? “As roupas são deles. A comida é deles. A casa é deles”, constata Will. De que independência falam eles? Como  integrar-se se ele está partido?

Acontece que Tom começa a gostar da socialização. Fogem, mas por iniciativa de Will. A divisão de caminhos vai se delineando. “O que está errado com você não está errado comigo”. Aí a riqueza do filme se aprimora. Sem respostas prontas. Uma profunda compreensão das personagens. A última cena é uma bonita teia de aranha. E, após os créditos, uma folha em forma de cavalo-marinho. Os cavalos-marinhos vivem juntos a vida toda, aprendi no filme.

Se “a guerra é a continuação da política por outros meios” (Carl von Clausewitz), até quando suportaremos estes senhores? 

 

Sem rastros
Cartaz do filme

Léo 

Vulcão

” – Me sinto como um vulcão.

 – Tens a luz da vida adentro” ( O Vulcão Ixcanul)

 

Tempos atrás vi um filme bonito, triste, surpreendente. Da Guatemala, o que é bem legal, pois não me lembro de ter visto um filme deste país: O Vulcão Ixcanul, de 2015, dirigido por Jayro Bustamante. Passa-se no campo ao redor do vulcão. Uma garota de dezessete anos comprometida para um casamento com o dono da fazenda onde moram. Percebe-se a dependência dos pais, o trabalho rígido e sem futuro. Lembrei que alguém disse que a cidade se desenvolve mais porque estamos juntos, aglomerados. A solidão daquelas personagens… As superstições… O dialeto, a língua que falam, e a falta de comunicação, só intermediada pelo patrão… O destino cruel das mulheres… A força da mãe… A garota querendo se libertar do destino traçado e se perdendo por falsas promessas… O carinho de mãe e filha. E a surpresa impactante. Bons atores. Belo filme.

vulcão
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Léo