Roberto

“Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas…”
Sinal Fechado, trecho, Paulinho da Viola.

Quando eu tinha uns quatorze anos conheci Roberto. Moreno cor de jambo, olhos de jabuticaba, “olhar noturno” (Alceu Valença), mãos bonitas, homem bonito, e uma boca que, hoje, beijaria. Ele, operário de uma fábrica de tratores, eu trabalhava de ajudante em perua escolar. Ele mais velho que eu, namorado de uma amiga minha. Meu amigo.

Meu pai era muito bravo, mas Roberto conquistou todos de casa. Conversávamos no portão, por horas a fio. Sobre o quê? O que uma garota de quatorze anos tem tanto pra falar? Não me lembro. Só sei que conversávamos muito. Sobre a vida. Com certeza sobre a vida.

Em 1977 fui cursar o colegial, hoje ensino médio. Roberto também voltou aos estudos. Assim todas as noites a gente se encontrava e conversava e estudava. Usávamos guarda-pó branco como uniforme numa escola pública. Tempos de ditadura militar. A professora de Física jurava que a gente se gostava. Ríamos. Só sei que, certa noite, Roberto me levou uma flor que tinha escondido no guarda-pó branco. 

Eu era amiga também da irmã de Roberto. Ela tinha olhos de dor. Fui até sua madrinha de casamento. A última vez que a vi foi num show da Gal Costa. Cantamos juntas bem alto “Meu nome é Gal…”.

Eu e Roberto nos afastamos. Eu queria participar de política, fazer movimento estudantil. Mudei de emprego, fui trabalhar como recepcionista numa clínica dentária de frente à Biblioteca Municipal. E passei a estudar de manhã. Comecei a participar de reuniões da União dos Estudantes Secundaristas, do Comitê pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita. Construímos uma turma na escola e fizemos um jornal, tiragem única, e amplamente distribuído. Tenho ele até hoje. Poemas, assuntos gerais, e eu escrevi sobre o congresso de reconstrução da UNE, união nacional dos estudantes. Tentei realizar a eleição da UNE dentro do colégio. Claro que o diretor vetou: a UNE era ilegal. Então a fizemos na rua, nas calçadas da escola.

Depois fui para faculdade; me mudei para São Paulo… Mas esta é outra história. Eu e Roberto nos perdemos “na poeira das ruas”.

“Muitos anos depois diante do pelotão de fuzilamento…”. Brincadeira. Este é o início de Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marques. Muitos anos depois nos reencontramos. Rápido. Roberto era casado, tinha filho pequeno e morava em outra cidade. 

Não deu tempo de dizer para ele o quanto foi importante para mim. Não tive tempo de explicar que as tantas horas de conversa me marcaram profundamente. Sem tempo de mostrar que ele está comigo até hoje.

Quem sabe me lê.

Léo

Glauco e Geisa

Enquanto exercito versos…

 

Não consigo me lembrar como conheci Glauco. Acho que em 1980. O que me lembro muito bem é que andávamos pelas madrugadas na cidade de Bauru, interior de São Paulo. E conversávamos muito. Sobre tudo. 

Glauco era alto, triste, muito triste. “Sou triste, quase um bicho triste” (Caetano Veloso, Mãe). Solitário. 

No quarto dele, em ato solene, me apresentou Nana Caymmi, vinil. E me contava o que sentia com a voz dela, a melancolia do canto. Nana ficou comigo até hoje.

Anos depois, eu morando em São Paulo, capital, em frente à Câmara Municipal, num ato reivindicando não me lembro o quê, recebi a notícia de sua morte. Foi meu primeiro amigo que perdi para a Aids. Ainda trago no corpo a dor. O ódio por uma doença recheada de preconceitos e moralismos. Por quê alguém tão bonito tinha que ser ceifado?

Moro em Curitiba faz dez anos. Nesta cidade fria de clima e pessoas, conheci várias. Delas, uma grande amiga, Geisa.

Geisa, assim como Glauco, conversamos muito. Também caminhamos pelas ruas desta cidade. Largo da Ordem, bares mil, shows, cinema, filmes e mais filmes… Dançamos em plena rua. Damos muita risada. Falamos bobagens do dia a dia, viagens espaciais, literatura, a dor do viver. Como nos conhecemos há muito, tivemos tempo até de brigar, e logo…. ela canta para mim, ao meu pedido, “Botecos abrindo e a gente rindo (…) Aventurar por toda cidade…” (Aventura, Eduardo Dusek). 

Ela é alta, esguia, me ensinou os cabelos brancos, gosta de dançar. É corpo, e o espírito voa.

Como outros amigos que já apresentei por aqui, o caro leitor, a leitora atenta, deve ter percebido o quanto gosto de conversar. Tudo é matéria. O voo gentil da borboleta, galáxias exuberantes, piada ouvida em supermercado, a raiva de um comum que é absurdo, e por aí vai… trocar ideia, percepções, saborear um pequeno gesto. Falar muito. Ouvir muito. E gargalhar.

Tenho quase 59 anos e sempre encontro alguém para manter este fio condutor da minha vida: Glauco, Geisa. Amigos.

E, assim, exercito versos…

Léo

Jorge e Elisa

“Mas você sabe, devoto dedicado, eu vejo e acredito
que lutamos juntos por um mundo melhor
sem nem saber qual,
claro tendo apenas que tudo tem que ser mudado”
do blog antalgicapoetica.com

 

Mônica viajou com mais dois amigos. Foram de carro até uma cidade mineira. Caminho longo, travessia de balsa, fila, e a música Tradição com Gil e Caetano rolando. A última trincheira era um rio. Ainda bem que não estava cheio. Um dos amigos tinha feito universidade com Jorge e Elisa.

Mônica chega num sítio. A casa foi construída pelas mãos de Jorge e Elisa, com ajuda de moradores locais. Casa de chão batido e sem luz elétrica. Com cachoeira no “quintal”.

Os amigos logo iniciam grandes conversas, contam histórias, lembranças, memórias, futuros. Fogueira. Maconha. Bebida.

Elisa conta a barra de ser mulher naquelas paragens. A natureza exuberante contracenando com machismo e outras mulheres a olhando como se fosse bicho esquisito: bebe sozinha no bar, trabalha duro junto com seu companheiro. Elisa sente falta do mundo.

Jorge fala de política. A natureza vigorosa em meio à disputas familiares. Cabrestos eleitorais. Morte. Ele, professor de história ensinando mudanças.

Entre tantos casos, Mônica presta atenção no de um amigo do casal daquelas bandas: viajava muito, pois era seu trabalho. Mulher e filhos sempre sós. Esse amigo volta de uma de suas viagens e fica sabendo do amante. A cidade toda comenta. Jorge e Elisa preocupados. A morte por ali é fácil.

No domingo, outras pessoas aparecem, incluindo o marido traído. Todos vão tomar banho na cachoeira, fazer caminhada, fumar um baseado. Na volta, preparam o almoço.

Mônica numa certa hora vai fumar. Senta-se num banco sob uma árvore. O traído senta-se ao seu lado. Conta-lhe sua história: trabalha duro, viaja muito. E quando volta para casa, encontra sua mulher o traindo. Amante. Chifres. Não lhe restava outra saída senão matá-los. É o que se exige, diz ele. Mônica o ouve interessada. Nunca tinha escutado este ponto de vista. Após ouvi-lo com muita atenção, mostra o ponto de vista da mulher traidora: sempre só, dando conta dos filhos, do dia a dia, das penúrias de quem fica. Nunca viaja. Imagina sim, seu marido nos braços de outra,  longe e ausente. O traído ouve Mônica. Riem. Trocam ideias. Mônica soube, tempos depois, que as mortes não aconteceram.

Mônica volta sozinha de ônibus. Fará uma nova viagem. Acorda muito cedo. Jorge a leva de carroça até a rodoviária.

O sol nascendo, o trote do cavalo, um baseado. Jorge falando de si numa voz mansa e macia.

Mônica nunca se esquece de Jorge e Elisa. Eles são muito bonitos.

Léo.

É verdade este bilhete

Trabalhei por vinte e cinco anos no Banespa, banco estatal, privatizado em 2000 e “doado” ao banco espanhol Santander. Eu era diretora do sindicato dos bancários numa cidade do interior de São Paulo. O sindicato era muito aguerrido, lutador, e aprontamos muito contra os patrões. O sindicato era tão diferente dos demais, que até rodízio dos diretores tinha: éramos liberados para o sindicato por um período e trabalhávamos na agência em outro. 

Faltando pouco mais de dois anos para eu me aposentar, fiz o último rodízio. Só que o banco estava bravo com nossa luta e aproveitou para me punir. Eu trabalhava na maior agência da nossa base. O banco me mandou para um posto bancário com apenas três funcionários, de frente do quartel da polícia militar. Entramos na justiça alegando perseguição, assédio moral, essas coisas. Mas, sabe como é a justiça: o mais comum é ficar do lado dos patrões. Perdemos. E lá fui eu cumprir a minha pena. O lugar era tão pequeno que nem cadeira pra mim tinha. 

O que fiz? Li. Levava livros e lia de pé sob um arquivo. Li Dom Quixote, todos os volumes de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord, entre outros. Sentia-me como os prisioneiros do século XIX que liam nas bibliotecas das prisões (risos). 

O posto bancário era longe, mas eu ia a pé. Numa dessas caminhadas, vi numa loja – dessas que vendem um pouco de tudo – livros usados. Claro que fui explorar. Você, caríssimo leitor, pode não acreditar, porém achei uma coleção enorme de livros de contos. Livros de capa dura, com brilhantes introduções, pequena biografia dos autores, e contos, muitos contos. Cada volume de um país: Maravilhas do Conto Universal, Editora Cultrix, SP, cuja data da edição vem em números romanos (1959, MCMLIX), e “impresso nos Estados Unidos do Brasil”. Não é demais? 

Ah, como viajei naquelas páginas… e muito bem acompanhada. Com Thomas Mann, “era como se o sonho não tivesse interrompido as suas angústias”, O Pequeno Senhor Friedmann; na Introdução do conto hispano-americano, “(…) na América os assuntos geralmente, ainda aguardam os seus intérpretes”, Edgard Cavalheiro; Gorki, “A vida tem sua sabedoria que se chama acaso”, Ruivo; “os vagalumes teciam uma trama de luz vacilante”, Afonso Arinos, Assombramento; Willa Cather, “(…) e Paulo regressou ao imenso desígnio das coisas”, O Caso de Paulo. E, Mário de Andrade, Vestida de Preto, “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”.

Bom, o banco continua enchendo as burras de dinheiro, os bancários continuam lutando, e eu me aposentei. Hoje até me arrisco nuns contos. Este, não sei se é conto ou não, “sei que é verdade”.

Léo

Evandro

“Sonho que se sonha só
é só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto
É realidade”
Prelúdio, na voz de Raul Seixas.

 

Evandro e sua amiga se conheceram em 1980. Numa faculdade de freiras, que de caridosas não tinham nada. Os dois, psicologia; ela, primeiro ano, ele, no segundo ou terceiro. 

Evandro era esguio. Sempre de camisa de manga curta, calça jeans, cinto de couro, bolsa de couro, sandálias de couro. Bigode vasto, como a cabeleira negra e cacheada. Sorriso sonoro e largo. Belo.

Evandro e sua amiga tinham outros amigos: a revolucionária e líder, e sua melhor amiga que lembrava Rita Lee, cabelos longos e franja; a modelo que amava o poeta – que a amava, mas era casado; um que desenhava e era revoltado e engraçado; um reformista, mais velho. E um revolucionário, direção, cínico e debochado, e muito amigo da amiga.

Evandro e a amiga participaram ativamente de grandes assembleias nas escadarias da escola paga. Ajudaram num movimento de boicote às mensalidades. Estavam numa grande passeata pelos corredores e andares dessa faculdade, posteriormente universidade, porém nunca mais teve atos tão corajosos.

A amiga colaborou numa convocação ao povo de uma passeata que resultou em prisões e vigília dos estudantes. A passeata aconteceu e era contra o presidente da república, general, que iria inaugurar a rodoviária da cidade. Evandro devia estar lá. Quem não faltou e liderou e discursou numa praça cercada de polícia, era o amigo revolucionário, cínico e debochado e muito amigo da amiga.

Evandro morava numa república. Ele e a amiga percorriam a pé o trajeto longo da escola até o centro da cidade. Eles paravam numa padaria e comiam sonho… e sonhavam e sonhavam… E iam em festas. E bebiam aos montes. E desprezavam o comum.

A amiga mudou-se de cidade. Evandro e ela trocavam cartas – aquelas de papel, tinta e selos. Ele mandava letras de música de Ednardo. A amiga guarda até hoje.

Quando a amiga se casou numa cerimônia simples de cartório, Evandro foi sua testemunha. Quando nasceu o segundo filho da amiga, Evandro não foi.

Os céus o tinham arrebatado.

Há de se entender que os céus o quisessem. Evandro tinha um abraço tão bom…

Léo

Uma turma

“Enquanto eles capitalizam a realidade, eu socializo meus sonhos” Sérgio Vaz.

 

A turma brotou de um grupo de jovens de uma organização clandestina. Não espalhe, eles tramavam a revolução. Enquanto ela não vinha, faziam longas caminhadas pela noite. Encontravam-se numa praça, faziam fogueira, garrafão de vinho barato passando de mão em mão. As conversas giravam pelo cotidiano, um mundo futuro, sonhos e desejos. Tramavam. Depois a volta na madrugada, outra longa caminhada.

Muitas vezes se encontravam num bar com nome de montanha. O garçom era um senhor de terno branco, gravata borboleta, longos bigodes e uma cabeleira branca. Sorriso vasto. O Barão, era chamado. A turma ocupava mesas, bebida barata, risos e mais risos. Discutiam até uma música, Vital e sua Moto, Paralamas Do Sucesso. Os apelidos reinavam. Cabelos esvoaçantes, calça jeans, camiseta, tênis, numa espécie de uniforme rebelde.

Outras vezes, ocupavam a sala da casa de um deles. Ouviam Yes, Pink Floyd… deixavam a TV ligada e sem som… uns desenhavam, outros conversavam. Acampavam também aos arredores do mar, mata, cachoeira. Outras longas caminhadas. 

Um, tinha olhos de sonho. Outro, vivia dizendo “quebrei a bússola”. Tinha aquele que achava que a vida era muito louca. Uma, falando em revolução e socialismo. Um, gostava de desenhar, era chamado de Vampiro, talvez pela música do Jorge Mautner. Alguns, sobre comunidades alternativas, vida em comum. Aquele, sobre música e instrumento. O violão sempre acompanhava a turma. Cantavam. Queriam uma vida diferente de seus pais.

O tempo aconteceu. O de olhos de sonho tem um programa alternativo numa rádio. Tem o que faz pipas gigantes e coloridas. Um, trabalha numa biblioteca e começará a ser professor. Uma é escritora. Um é músico. O desenhista é cenógrafo. Um casal que se formou na turma, vive num sítio, plantações orgânicas, lareira, rodeado de netos.

Outras histórias… Outras turmas. A revolução – de certa forma – ecoou… não tão grandiosa, é certo, porém nos gestos do dia a dia…

O tempo só não conseguiu afastar a turma de seus corações e mentes. Na tapeçaria do tempo bordaram a palavra amizade.

Léo

Bruno

“Sou morte recente, ainda com lágrimas” Cecília Meireles, Ressurreição, trecho.

 

Bruno se matou. Um jovem professor se matou. Talvez por um quadro depressivo. Talvez porque um governo doentio tenha eleito os professores como alvo. Bruno se matou em pleno Setembro Amarelo. Em outros tempos os sinos se dobrariam… Em sua carta de suicídio: “Sigam vocês”…

Amaranta, de Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez, sonhou que iria morrer. Anunciou por todo povoado, Macondo, que levaria recados dos vivos para os mortos. Serena o dia todo, ia recebendo as cartas, preparando sua roupa, suas chinelinhas, sua vestimenta de defunta. De noite morreu. Foi coberta com sua mortalha que tinha tecido boa parte da vida, lembrando Penélope de Odisseia. E, junto de seu corpo, as cartinhas, os recados…

Em Maria dos Prazeres, também de Gabriel, ela da mesma forma sonhou com a morte. Preparou-se: escolheu a lápide, o caixão, o lugar onde seria enterrada. Só que a morte não veio. Morreu sua vida antiga. Porém, há outra história neste conto. Maria dos Prazeres vive na Espanha de Franco. A polícia tinha matado três anarquistas. Suas lápides, sem nome, por ordem da polícia franquista. Tentativa de esquecimento. Só que todas as noites alguém escrevia os nomes, com tinta, esmalte, batom… E todas as manhãs os nomes eram apagados… E todas as noites escritos de novo. Resistência.

O suicídio provoca em nós que ficamos – os vivos – intensos sentimentos. Dor: não tem mais retorno. Raiva: por que não resistiu? Tristeza: não o temos mais. Culpa: o que podíamos ter feito? Por que não percebemos? Derrota: a humanidade não conseguiu uma resposta. E finalmente, Respeito. Um profundo respeito por sua decisão.

Assim, sem tempo para levar nossos recados, sem os sinos se dobrarem, Bruno se foi.

“Sigam vocês”! Sigamos!

Léo

“Somente os solitários
sabem
como brincar…”  Zé.

Zé era escrivão de polícia nos idos dos anos oitenta, século passado. Gostava de David Bowie. Sua musa era Sylvia Kristel, atriz holandesa do filme O Amante de Lady Chatterley (1981, dirigido por Just Jaeckin). De dia, delegacia, depoimentos, máquina de escrever, histórias trágicas e corriqueiras. De noite, desenho em lápis de cor, poemas, música, e muita, muita maconha.

Zé morava só e sem laços familiares. Dificilmente saia, mais para trabalhar. Tinha uma rede de amigos que apareciam. Em rodas esfumaçadas e trilhas sonoras, conversavam sobre o mundo, universo, outros mundos. Sonhavam. Discutiam arte, poema, música. E trivialidades de uma vida de bairro pobre. Nada trivial eram os desejos. Tudo rodeado por paredes de madeira forradas de desenhos de seres imaginários, pessoas caricatas, pequenos contos. A poesia reinava pelos cômodos. Tudo fruto das madrugadas.

Da maconha separava as sementes. Eram plantadas no vaso da mesa do delegado. “Mas, Zé, saberão que é você que as plantou”. Zé – calmamente e com um sorriso travesso – responde que o vaso é do delegado: “O que eu tenho com isso?”. Travessuras sob um governo de botas e fardas.

A última notícia é que Zé tinha uma companheira. Não era mais só. Ela fazia purê de batatas regado de especiarias.

Tiveram um bebê. Criança fruto dessa vida travessa. 

Léo

Úrsula

“Que tudo é desse mundo/ Surpresa também” Cruel, na voz de Luiz Melodia.

 

Nos anos de 1975 e 1981 a 84, o Festival de Águas Claras aconteceu. Anos de chumbo. Numa fazenda, no meio do pasto, na cidade pequena de Iacanga, nos arredores de Bauru, SP. A ditadura militar tinha seus anos contados. Em 75, Ernesto Geisel, ditadura bruta. Nos anos oitenta, o presidente era João Figueredo, aquele que preferia o cheiro do cavalo ao do povo. Anistia. Logo o país seria sacudido por um movimento Diretas Já, o Brasil se vestiria de amarelo. Mas Úrsula ainda não sabia disso. O ar era de querer mudanças, movimento hippie, amor livre, paz e amor, maconha…

A imprensa trata com desdém o festival. Ninguém acredita nele. Woodstock brasileiro? Mas Leivinha, seus irmãos e amigos, vão montando o palco. Vendem 12.000 ingressos e aparecem mais de 70.000 pessoas. A juventude, ávida do novo. E vão desfilando Paulinho Boca de Cantor, Raul Seixas, Grupo Rumo, Egberto Gismonti, Hermeto Pascal, Itamar Assunção, Almir Sater, Jards Macalé, Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, Diana Pequeno, Anastácia. Walter Franco: “é uma dor canalha/ é um grito que se espalha”. A diversidade . A sociedade alternativa. E pasmem, João Gilberto. O mesmo que desistira de tantos palcos por falta de um bom som. Chove. A estrada encharcada. Levam os músicos de trator. E João Gilberto está lá. Canta acompanhado pelo público, o dia amanhecendo… Alguém diz: o impossível aconteceu.

Úrsula, ano de 1983. Morava numa kitnet em São Paulo, com mais três garotas. Desempregada e sem dinheiro. Fazia parte de uma turma linda de amigos. Dentre eles, José, que organizou um ônibus para o festival. Vendeu os assentos e a convidou, assim iria de graça. Sem barraca, os amigos ofereceram lugar. Sem ingresso, burlar os arames farpados. A viagem, deliciosa. No Festival, Úrsula acompanha Grupo Rumo, Raul Seixas bêbado, Egberto Gismonti tocando ao entardecer. Na madrugada embriagante, ela e José numa barraca, no meio do impossível que estava acontecendo. E nem sabiam disso. Começa uma parte significativa de sua vida. Mas Úrsula nem sabia… Alguns anos depois, seus filhos começam suas próprias histórias…

Úrsula, 2019. Tempos sombrios. Assiste o documentário O Barato de Iacanga, dirigido por Thiago Mattar (2019). Úrsula sorri. O improvável pode acontecer!

Léo

 

Conto (não conto): Léo, dez anos atrás…

Num tom confessional

Meu nome é Leonilda, “a que combate como leão”. Seu significado, achei num dicionário de nomes que comprei numa barraca de livros usados em São Paulo. Segundo meu pai, este nome veio de um livro de literatura que ele leu, e gostou. Então, quando nasci fraca e miúda, mesmo assim não se intimidou e escolheu este nome forte para mim. No alto dos meus quarenta e oito anos – quase quarenta e nove – creio que fiz jus a este destino de nome: “a que combate como leão”. Mesmo porque combater não é necessariamente vencer ou perder; é o próprio verbo, combater.

Nasci em vésperas. Véspera de “independência ou morte”, seis de setembro; em 1961, véspera do golpe militar. Nos meus sete anos de vida nem sabia que o mundo estava sendo sacudido pelo “maio de 68”, a grande aliança operário-estudantil. E nem me lembro muito das grandes manifestações contra a guerra do Vietnã. Ou da ditadura que se espalhou pela América Latina. Mas, naquele ano, decidi que queria mudar o mundo. Acho que foi de noite na cama, depois de pensar muito e muito. Tomei esta decisão e arco com ela até hoje. Mesmo que hoje seja algo mais solitário e confinado num apartamento entre livros e filmes. Mesmo que “mudar o mundo” hoje, seja algo mais modesto, e, muitas vezes, adquira um tom mais de “que o mundo não me mude”.

O mundo que me cercava aos sete anos era pobre em todos os sentidos: de grana mesmo, de projetos pessoais, de visão de mundo. Hoje sei que é dos que brigam muito pelo mínimo, a sobrevivência. Era um mundo sob a ditadura militar, autoritário, machista. Mas, de pessoas honestas, simples, e… lutadores à sua maneira.

Eu lia muito. Literatura, muitos gibis, fotonovelas melosas e de uma agente da Cia em plena guerra fria, cujo nome até uns dias atrás eu me lembrava. Também muitos livrinhos, daqueles de formato de bolso, de faroeste americano. Meu pai tinha uma coleção das fotonovelas da agente e esses livrinhos de faroeste, numa espécie de legado. A leitura era para vislumbrar um outro mundo e aprendi que isso era possível.

Meu primeiro passo foi ir para igreja católica. Vejam, não tinha disponível nem uma outra instituição para me indicar como mudar o mundo, além da escola, que gostava muito. Na escola participava das cerimônias oficiais – normalmente eu era a oradora. Boa aluna, menos em educação física e artes. Na igreja, participei de um grupo de jovens e ajudava o padre nas cerimônias de casamento e batismo. Era um bom grupo, conheci muita gente boa, grandes amigos. Eu escrevia e lia nas missas num momento final, indicado ao leigo. Não sei se o ritual continua o mesmo. Mas eu escrevia com muita emoção; sempre tive uma voz mais grave, então lia bem, as pessoas gostavam; era sempre muito emotivo; eu falava com o coração. Mesmo nos rituais da escola, era meu coração que falava. 

Um homem chamado João

Na igreja conheci um padre chamado João. Eu tinha uns dez, doze anos. Ele com uma voz truncada, severo, avesso às mudanças que o momento histórico inspirava. Nós conversávamos muito. Ele não tinha respostas para minhas questões, “se Deus criou tudo, então criou o mal também?”. Não, ele não tinha as respostas, a não ser as clássicas, aquelas tiradas da bíblia simplesmente, não conseguia formular tratados. Mas, era um bom homem. Creio que o que eu mais gostei dele foi uma redação que escreveu no tempo de seminário: Terra de Gigantes. Os gigantes  eram os ricos e poderosos. Afinal, “é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino dos céus”. Nesse tempo eu não sabia que os ricos nem estavam aí com esse reino longínquo da eternidade. Porém a redação tinha um tom de rebeldia que gostei muito. O padre João, no entanto, me disse que era “coisa da juventude”… Fui encontrá-lo muitos anos mais tarde numa missa de sétimo dia. Tinha morrido a esposa de um aposentado do Banespa. Como ele sempre participava conosco das grandes atividades de luta contra a privatização, senti-me no dever, como diretora do sindicato, de ir à missa, mesmo sendo ateia. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com o padre João no altar da igreja de Santa Teresinha. Ele estava igualzinho, só os cabelos crespos grisalhos. Conversamos um pouco, não me lembro sobre o quê, mas creio que falei de como gostava dele… e acho que me lembrei de sua redação. Deveria ter lhe dito que encontrei a “terra de gigantes” aqui mesmo, e que os combatia via sindicato dos bancários. Os gigantes eram os financeiros. Será que ele diria “coisa de juventude”? E eu já tinha muitos anos além da juventude…

Marias

Outra lembrança da minha infância é a minha avó paterna. Maria, como minha mãe. Aquela música que a Elis e o Milton Nascimento cantam, Maria, Maria, fala delas: “a que não vive, apenas aguenta”. Minhas Marias são fortes como as da música. Minha avó era bonita, forte, solitária, e tinha lá seus dias de mau humor. Sempre contava suas histórias; lembrava com precisão de seu passado. Quando eu era pequena ela benzia a gente. Depois virou crente e esqueceu seus ramos de arruda. Até hoje sinto falta de seus benzimentos. Sempre me lembrarei dela penteando seus longos cabelos brancos ao sol, depois de lavá-los, sentada numa cadeira no quintal.

“Peço, mas você não vem”

Não sei quando foi que a solidão se instalou em mim. Só sei que ela pesa feito um cão. Como sabem, a solidão tem pelo menos duas faces. Uma, da autonomia, independência, morar só, construir seu ninho, por os quadros na parede, sentir-se plena. Outra, é a de estar só mesmo, sem companhia, rir sozinha de algo engraçado, não ter com quem discutir um filme, lembrar-se vagamente de mãos percorrendo seu corpo, sentir saudade do outro e esse outro não existir. Esta é a face triste. Triste e resignada, pois você já tem idade suficiente para saber que esse outro não vem, peço, mas não vem. É saber que se tem um mundo todo na cabeça e não ter para quem contar; é construir projetos solitários e longínquos sem dividi-los com ninguém; é aquela cantada pelos poetas; é a que não se conjuga verbo nenhum. Mas, talvez, depois de viver bastante, de viver com tanta gente, grupos, amigos, família, seja meu tempo de solidão, numa espécie de trégua, de intervalo, para o próximo embate. O problema é que nunca se sabe se é mesmo um espaçamento ou se já se está vivendo sua nova vida.

Ler para entender a vida

Ontem li Umberto Eco. Num dos seus passeios pelo bosque da literatura, escreve que lemos para entender a vida. Que, talvez, estejamos procurando um narrador, um autor modelo, dessa vida aqui que chamamos de realidade. Que buscamos nos filmes e nos livros compreender a mensagem secreta da existência, se é que ela existe. Não sei dessa coisa de narrador, ou mensagem secreta, o que procuro nos filmes e livros é um jeito de viver outra vida para compreender esta. Porque tudo é muito tênue. Uma linha fina, muito fina, separa a vida e a morte. Porque se pensar bem, que sentido é isso de nascer com uma única certeza, a morte? Fico pensando nesse mundo que a humanidade construiu em cima de uma crosta de um planeta que vaga no espaço. E constrói como se tudo fosse eterno, como se nós fôssemos eternos. Mas esta construção também traz em si a valentia de milhões de anos, a luta ardente pela sobrevivência, de sair dos mares, de se pendurar nas árvores, caminhar ereto,  viver de caça e pesca, de fabricar instrumentos, se aventurar pelos continentes, vencer o fogo, as tempestades, de brincar de deus e criar. Parece que faz uns doze mil anos que a humanidade criou o abstrato, os desenhos nas paredes das cavernas. E que salto foi isso. Sair da esfera da sobrevivência e criar algo que existe, mas não existe, se comunicar, abstrair. Bom, vocês poderiam alegar: veja no que deu. É, deu nisso tudo, deu nessa exuberância dos extremos: alguns, muito ricos; muitos, muito pobres. Mas já que podemos abstrair, podemos pensar que daqui um tempo, a humanidade possa dar “um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade”. Por que não? Se tem a capacidade de fazer um bicho esquisito e pesado, voar; se constrói algo como um navio ou um foguete para os confins do espaço, por que não haveria de construir o solidário, o “caçar de manhã e ler poesia à noite”? Se o homem construiu a própria vida de alguns poucos elementos por que não realizaria o socialismo, “uma nova forma de viver”?

Pensei nesta tarde se isto seria um conto. Percebo que não sei contar uma história com começo, meio e fim. Gosto de ir escrevendo as emoções que a vida vai me dando. E pouco sei desse mundo virtual, só o utilizo como uma ferramenta, apesar de saber que um mundo está contido nesse espaço. Creio que tem razão quem afirmou que a realidade é maior que qualquer teoria. A realidade abarca tudo, incluindo o virtual, a literatura, a arte, o inventado. Assim como eu. Tem horas que sou um poço de interrogações. Tem momentos que sinto somente um vazio, vazio de vida, vazio… Muitas vezes sinto uma brisa de vitória, de ter conseguido, de ter construído essa minha história, a real, não esse rascunho de conto. Horas passo em completa harmonia com minha existência. E que penso, não num grande projeto, mas nos passos de cada dia. Às vezes consigo só sentir o tempo fluindo… Não penso mais em escrever uma obra de arte. Penso somente em escrever. Porque minha cabeça está povoada de sentimentos confusos, soltos, bons, cruéis, líricos. Por vezes, sinto a catarse, a epifania, ao ouvir uma orquestra, um instrumento; ao ler algo; ao ver a capacidade do ser humano em criar. E pergunto-me se não tenho, de alguma maneira, de deixar este vulcão que sinto dentro de mim vir à tona. Ser simples e ter grandes sonhos. Fazer e sentir. Assim como a vida, eu sou tudo isso, e mais um pouco que não consigo escrever. Poderia falar das turmas que tive, dos amigos, dos amores, das lutas, das conquistas, dos fracassos…  Tudo isso seria eu, no entanto, um eu incompleto, um eu solitário, perdido entre as paredes da história curta de um momento. Nasci mirrada e me foi dado um grande destino, um desafio me impus aos sete anos, e estou no combate, nem sempre o bom combate, mas no combate.

Mas, como eu estava dizendo… Meu nome é Leonilda, “a que combate como leão”.

 

P.S. 1- Hoje tenho este blog, participo de rodas de leitura, e já escrevo contos… E minha decisão de mudar o mundo se mantém: contribuir para um mundo socialista!

P.S. 2- O título “Conto (não conto)” roubei de Sérgio Sant’Anna.

Léo