Num tom confessional
Meu nome é Leonilda, “a que combate como leão”. Seu significado, achei num dicionário de nomes que comprei numa barraca de livros usados em São Paulo. Segundo meu pai, este nome veio de um livro de literatura que ele leu, e gostou. Então, quando nasci fraca e miúda, mesmo assim não se intimidou e escolheu este nome forte para mim. No alto dos meus quarenta e oito anos – quase quarenta e nove – creio que fiz jus a este destino de nome: “a que combate como leão”. Mesmo porque combater não é necessariamente vencer ou perder; é o próprio verbo, combater.
Nasci em vésperas. Véspera de “independência ou morte”, seis de setembro; em 1961, véspera do golpe militar. Nos meus sete anos de vida nem sabia que o mundo estava sendo sacudido pelo “maio de 68”, a grande aliança operário-estudantil. E nem me lembro muito das grandes manifestações contra a guerra do Vietnã. Ou da ditadura que se espalhou pela América Latina. Mas, naquele ano, decidi que queria mudar o mundo. Acho que foi de noite na cama, depois de pensar muito e muito. Tomei esta decisão e arco com ela até hoje. Mesmo que hoje seja algo mais solitário e confinado num apartamento entre livros e filmes. Mesmo que “mudar o mundo” hoje, seja algo mais modesto, e, muitas vezes, adquira um tom mais de “que o mundo não me mude”.
O mundo que me cercava aos sete anos era pobre em todos os sentidos: de grana mesmo, de projetos pessoais, de visão de mundo. Hoje sei que é dos que brigam muito pelo mínimo, a sobrevivência. Era um mundo sob a ditadura militar, autoritário, machista. Mas, de pessoas honestas, simples, e… lutadores à sua maneira.
Eu lia muito. Literatura, muitos gibis, fotonovelas melosas e de uma agente da Cia em plena guerra fria, cujo nome até uns dias atrás eu me lembrava. Também muitos livrinhos, daqueles de formato de bolso, de faroeste americano. Meu pai tinha uma coleção das fotonovelas da agente e esses livrinhos de faroeste, numa espécie de legado. A leitura era para vislumbrar um outro mundo e aprendi que isso era possível.
Meu primeiro passo foi ir para igreja católica. Vejam, não tinha disponível nem uma outra instituição para me indicar como mudar o mundo, além da escola, que gostava muito. Na escola participava das cerimônias oficiais – normalmente eu era a oradora. Boa aluna, menos em educação física e artes. Na igreja, participei de um grupo de jovens e ajudava o padre nas cerimônias de casamento e batismo. Era um bom grupo, conheci muita gente boa, grandes amigos. Eu escrevia e lia nas missas num momento final, indicado ao leigo. Não sei se o ritual continua o mesmo. Mas eu escrevia com muita emoção; sempre tive uma voz mais grave, então lia bem, as pessoas gostavam; era sempre muito emotivo; eu falava com o coração. Mesmo nos rituais da escola, era meu coração que falava.
Um homem chamado João
Na igreja conheci um padre chamado João. Eu tinha uns dez, doze anos. Ele com uma voz truncada, severo, avesso às mudanças que o momento histórico inspirava. Nós conversávamos muito. Ele não tinha respostas para minhas questões, “se Deus criou tudo, então criou o mal também?”. Não, ele não tinha as respostas, a não ser as clássicas, aquelas tiradas da bíblia simplesmente, não conseguia formular tratados. Mas, era um bom homem. Creio que o que eu mais gostei dele foi uma redação que escreveu no tempo de seminário: Terra de Gigantes. Os gigantes eram os ricos e poderosos. Afinal, “é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino dos céus”. Nesse tempo eu não sabia que os ricos nem estavam aí com esse reino longínquo da eternidade. Porém a redação tinha um tom de rebeldia que gostei muito. O padre João, no entanto, me disse que era “coisa da juventude”… Fui encontrá-lo muitos anos mais tarde numa missa de sétimo dia. Tinha morrido a esposa de um aposentado do Banespa. Como ele sempre participava conosco das grandes atividades de luta contra a privatização, senti-me no dever, como diretora do sindicato, de ir à missa, mesmo sendo ateia. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com o padre João no altar da igreja de Santa Teresinha. Ele estava igualzinho, só os cabelos crespos grisalhos. Conversamos um pouco, não me lembro sobre o quê, mas creio que falei de como gostava dele… e acho que me lembrei de sua redação. Deveria ter lhe dito que encontrei a “terra de gigantes” aqui mesmo, e que os combatia via sindicato dos bancários. Os gigantes eram os financeiros. Será que ele diria “coisa de juventude”? E eu já tinha muitos anos além da juventude…
Marias
Outra lembrança da minha infância é a minha avó paterna. Maria, como minha mãe. Aquela música que a Elis e o Milton Nascimento cantam, Maria, Maria, fala delas: “a que não vive, apenas aguenta”. Minhas Marias são fortes como as da música. Minha avó era bonita, forte, solitária, e tinha lá seus dias de mau humor. Sempre contava suas histórias; lembrava com precisão de seu passado. Quando eu era pequena ela benzia a gente. Depois virou crente e esqueceu seus ramos de arruda. Até hoje sinto falta de seus benzimentos. Sempre me lembrarei dela penteando seus longos cabelos brancos ao sol, depois de lavá-los, sentada numa cadeira no quintal.
“Peço, mas você não vem”
Não sei quando foi que a solidão se instalou em mim. Só sei que ela pesa feito um cão. Como sabem, a solidão tem pelo menos duas faces. Uma, da autonomia, independência, morar só, construir seu ninho, por os quadros na parede, sentir-se plena. Outra, é a de estar só mesmo, sem companhia, rir sozinha de algo engraçado, não ter com quem discutir um filme, lembrar-se vagamente de mãos percorrendo seu corpo, sentir saudade do outro e esse outro não existir. Esta é a face triste. Triste e resignada, pois você já tem idade suficiente para saber que esse outro não vem, peço, mas não vem. É saber que se tem um mundo todo na cabeça e não ter para quem contar; é construir projetos solitários e longínquos sem dividi-los com ninguém; é aquela cantada pelos poetas; é a que não se conjuga verbo nenhum. Mas, talvez, depois de viver bastante, de viver com tanta gente, grupos, amigos, família, seja meu tempo de solidão, numa espécie de trégua, de intervalo, para o próximo embate. O problema é que nunca se sabe se é mesmo um espaçamento ou se já se está vivendo sua nova vida.
Ler para entender a vida
Ontem li Umberto Eco. Num dos seus passeios pelo bosque da literatura, escreve que lemos para entender a vida. Que, talvez, estejamos procurando um narrador, um autor modelo, dessa vida aqui que chamamos de realidade. Que buscamos nos filmes e nos livros compreender a mensagem secreta da existência, se é que ela existe. Não sei dessa coisa de narrador, ou mensagem secreta, o que procuro nos filmes e livros é um jeito de viver outra vida para compreender esta. Porque tudo é muito tênue. Uma linha fina, muito fina, separa a vida e a morte. Porque se pensar bem, que sentido é isso de nascer com uma única certeza, a morte? Fico pensando nesse mundo que a humanidade construiu em cima de uma crosta de um planeta que vaga no espaço. E constrói como se tudo fosse eterno, como se nós fôssemos eternos. Mas esta construção também traz em si a valentia de milhões de anos, a luta ardente pela sobrevivência, de sair dos mares, de se pendurar nas árvores, caminhar ereto, viver de caça e pesca, de fabricar instrumentos, se aventurar pelos continentes, vencer o fogo, as tempestades, de brincar de deus e criar. Parece que faz uns doze mil anos que a humanidade criou o abstrato, os desenhos nas paredes das cavernas. E que salto foi isso. Sair da esfera da sobrevivência e criar algo que existe, mas não existe, se comunicar, abstrair. Bom, vocês poderiam alegar: veja no que deu. É, deu nisso tudo, deu nessa exuberância dos extremos: alguns, muito ricos; muitos, muito pobres. Mas já que podemos abstrair, podemos pensar que daqui um tempo, a humanidade possa dar “um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade”. Por que não? Se tem a capacidade de fazer um bicho esquisito e pesado, voar; se constrói algo como um navio ou um foguete para os confins do espaço, por que não haveria de construir o solidário, o “caçar de manhã e ler poesia à noite”? Se o homem construiu a própria vida de alguns poucos elementos por que não realizaria o socialismo, “uma nova forma de viver”?
Pensei nesta tarde se isto seria um conto. Percebo que não sei contar uma história com começo, meio e fim. Gosto de ir escrevendo as emoções que a vida vai me dando. E pouco sei desse mundo virtual, só o utilizo como uma ferramenta, apesar de saber que um mundo está contido nesse espaço. Creio que tem razão quem afirmou que a realidade é maior que qualquer teoria. A realidade abarca tudo, incluindo o virtual, a literatura, a arte, o inventado. Assim como eu. Tem horas que sou um poço de interrogações. Tem momentos que sinto somente um vazio, vazio de vida, vazio… Muitas vezes sinto uma brisa de vitória, de ter conseguido, de ter construído essa minha história, a real, não esse rascunho de conto. Horas passo em completa harmonia com minha existência. E que penso, não num grande projeto, mas nos passos de cada dia. Às vezes consigo só sentir o tempo fluindo… Não penso mais em escrever uma obra de arte. Penso somente em escrever. Porque minha cabeça está povoada de sentimentos confusos, soltos, bons, cruéis, líricos. Por vezes, sinto a catarse, a epifania, ao ouvir uma orquestra, um instrumento; ao ler algo; ao ver a capacidade do ser humano em criar. E pergunto-me se não tenho, de alguma maneira, de deixar este vulcão que sinto dentro de mim vir à tona. Ser simples e ter grandes sonhos. Fazer e sentir. Assim como a vida, eu sou tudo isso, e mais um pouco que não consigo escrever. Poderia falar das turmas que tive, dos amigos, dos amores, das lutas, das conquistas, dos fracassos… Tudo isso seria eu, no entanto, um eu incompleto, um eu solitário, perdido entre as paredes da história curta de um momento. Nasci mirrada e me foi dado um grande destino, um desafio me impus aos sete anos, e estou no combate, nem sempre o bom combate, mas no combate.
Mas, como eu estava dizendo… Meu nome é Leonilda, “a que combate como leão”.
P.S. 1- Hoje tenho este blog, participo de rodas de leitura, e já escrevo contos… E minha decisão de mudar o mundo se mantém: contribuir para um mundo socialista!
P.S. 2- O título “Conto (não conto)” roubei de Sérgio Sant’Anna.
Léo
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