Madame Bovary

“No ano de 1856, ano de nascimento de Freud, Gustave Flaubert havia começado a publicar na Revue de Paris os primeiros capítulos de Madame Bovary, seu romance de estreia, cujo tema foi inspirado em uma notícia de jornal sobre o suicídio de uma adúltera provinciana” assim relata Maria Rita Kehl na página 125 de seu livro, tese, Deslocamentos do Feminino (Editora Imago, RJ, 1998). A autora elege esta personagem como a mulher freudiana na passagem para a modernidade.

Modernidade, capitalismo do século XIX, traça uma linha rígida entre o espaço público e privado. E inaugura o sujeito. O indivíduo não nasce pronto, vai definindo seus contornos, “numa sociedade que passou rapidamente do monopólio de um discurso para a convivência com uma multiplicidade de discursos sobre como os sujeitos devem se comportar” (p. 39). Uma sociedade que está quebrando as amarras feudais. A impressão é de caos, angústia frente ao desconhecido. Peter Gay, citado pela autora, diz “assim, a celebrada solidez da vida burguesa era tanto uma defesa erguida às pressas quanto um objetivo que, no melhor dos casos, se atingia” (p. 49). “O domínio público, espaço de transações comerciais, sociais e políticas das grandes cidades do século XIX, era o espaço de convivência com uma multidão de desconhecidos e uma diversidade de tipos sociais sem precedentes na história do Ocidente” (p. 52). A família torna-se o refúgio deste baile de máscaras.

Família em que a responsável é a mulher confinada e confiscada das ruas, espaço público. A questão do ser sujeito, a promessa, não cabe à ela. Emma Bovary, por exemplo, só é introduzida no romance pelos olhos de Charles, seu futuro marido. “E só depois de casada que Emma se torna a personagem principal de sua própria história” (p. 141). Mas, quem é Emma Bovary?

“A mulher surge aqui, na literatura, como sintoma das contradições produzidas pelos deslocamentos que transformaram a vida social como um todo (…). Emma é um paradigma desta situação” (p. 133). Vivia na fazenda, fazia parte das primeiras gerações de jovens educadas, “frequentou um seminário de freiras não para se tornar religiosa, mas para educar-se”. Ela lê romances que geram uma expectativa fantasiosa sobre o futuro que “só poderia se realizar no amor”. Casa-se com Charles Bovary, médico, que “rapidamente demonstra ser um homem (…) sem espírito” (p. 143). Faltava ao marido o tempero romântico, sonhador.

Emma vai se construindo em várias “personagens literárias” (p. 139). A primeira que tenta compor é a de uma jovem piedosa, que acaba misturando atitudes devotas com fantasias eróticas. Quando se casa tenta se sustentar no papel de esposa séria e dedicada substituindo a fantasia da adolescente piedosa. Mas, como a aventura no casamento não acontece, é envolvida na terceira personagem – amante, “finalmente igual às heroínas de romance que tanto havia invejado” (p. 148). Madame Bovary é “ansiosa por deixar de ser o que é, por tornar-se outra” (p. 150), eis seu caráter dramático.

Na ousadia de viver um amor clandestino “desperta nela outras forças adormecidas (…) e Emma entra numa espécie de fúria consumista” (p. 152). “Para satisfazer esta outra versão de seus desejos de ‘ser outra’ (…) realiza a passagem do ser para o ter, (…) incapaz de enunciar pelo uso da linguagem já que, privada do domínio sobre sua fala, não produz outro discurso além da repetição dos clichês pelos quais se aliena como objeto para seus amantes” (p. 153).

Madame Bovary encarna um último papel, heroína trágica: se suicida. Não vê outro caminho, não encontra respostas, não consegue ser “outra”.

Mas, como não compreendê-la, apesar de seu trajeto tortuoso? Eu, pensando numa definição de mulher, só consigo responder com uma única característica: ser oprimida. Uma opressão que vai da incompreensão dos homens e mulheres que se curvam perante o opressor até a morte literal (basta ver as estatísticas). Opressão, incompreensão. E, nós que tentamos ser livres, encontramos – boa parte – o caminho da solidão. Suicídio. Morte. Solidão. Precisamos mudar este enredo.

Ainda bem que eu tenho voz!

Léo

O que é ser mulher?

“O caráter feminino e o ideal de feminilidade segundo o qual ele é modelado são produtos da sociedade masculina. (…). Aliás, tudo que a palavra natureza designa no contexto da cegueira burguesa não passa de uma chaga da mutilação social” Theodor Adorno, Minima Moralia.

Maria Rita Kehl, psicanalista, poeta, investiga os Deslocamentos do Feminino (Editora Imago, RJ, 1998). Debruça-se no século XIX em que mulheres histéricas são ouvidas pelo Dr. Freud, inaugurando uma nova ciência, a psicanálise. O século de nascimento da psicanálise é o da “Modernidade, urbanização, industrialização, organização da vida pelos parâmetros da eficácia industrial e da moralidade burguesa, nascimento da família nuclear, separação nítida entre os espaços público e privado” (p. 38). O nascimento do sujeito, a proclamação do indivíduo.

Mas quem foi esta mulher freudiana? “De que tradição vinham se desviando essas que a psiquiatria da época chamava de histéricas?” (p. 58). A ideia em voga era de que as mulheres “seriam um conjunto de sujeitos definidos a partir de sua natureza”, natureza esta que seria necessário domar para que elas pudessem cumprir o seu destino: o lar, “único lugar digno” (p. 60) e a maternidade, sua tarefa mais valiosa.

Esta ideia insistente de que pensadores e cientistas compartilham e reafirmam neste período, “pode ser vista como reação a um início de desordem social que se esboça no século XVII e se torna alarmante no século XVIII, quando a Revolução Francesa destrói as fronteiras que no Antigo Regime separavam a esfera pública e privada” (p. 60). As mulheres, praticamente, pela primeira vez na história tomam as ruas buscando as bandeiras de liberdade, igualdade e fraternidade que a nova classe social promete. Elas são sujeitos na revolução de tais promessas, lado a lado com os homens, reconhecidas como seres humanos completos capazes de exercerem seus direitos. No século seguinte, a classe burguesa, já no poder, assustada com esta mulher combativa, apela para a sua “natureza”: a confina nas paredes do lar, a chama de rainha, e lhe dita sua única função, ter filhos. Uma classe que viu emergir sua classe antagônica nas barricadas de Paris em 1848, a classe dos trabalhadores, cobrando o que lhe foi prometido. “Para Fredric Jameson (…) a burguesia que ‘inventou’ o homem universal no século XVIII para combater a aristocracia se viu diante da necessidade de se defender do proletariado, depois de 1848, ‘relutante em reconhecê-lo como parte daquela humanidade universal'” (p. 182).

Tivemos que vencer Kant, Hegel, Rousseau, filósofos que insistiam na tal “natureza” da mulher. Eram os homens que nos definiam. “Até aqui, entendo que a feminilidade é uma construção do discurso masculino à qual se espera que as mulheres correspondam (…)” (p. 81). Assim as mulheres se alienam sob duas formas. No sentido político, “distante das disputas de poder que definiriam seus próprios destinos” (p. 82), como o divórcio, por exemplo. No sentido subjetivo: ” deixaram de participar do que Freud chamou ‘as grandes tarefas da cultura’, permanecendo socialmente invisíveis. (…) se a mulher só produz filhos, só se produz como mãe – o que indica, no mínimo, um repertório muito estreito de opções, além de produzir um impasse no plano das identificações” (p. 83).

Este livro de Maria Rita Kehl é bastante rico em pelo menos duas outras questões, todas discutindo esses deslocamentos do feminino. A psicanálise, que nem me atrevo a escrever, meu conhecimento é quase nulo ( a única coisa que percebi é que nossa cabeça é uma bagunça… risos…nervosos). E sobre o romance de Flaubert, Madame Bovary, como exemplo dessa mulher freudiana, que cabe em outro post.

A questão o que é ser mulher está junta com o que é ser homem. Quem é o sujeito? Sabe-se que o sujeito “vive sem saber o que o domina” (p. 48). A burguesia que inaugura o conceito de indivíduo não pode dar conta da tarefa. Suas bandeiras encobrem a verdadeira natureza do capitalismo: milhares, milhões, que produzem e poucos que se apropriam. Uma sociedade de classes necessita transformar a mulher em oprimida pela questão da posse, herança. Por isso, nós precisamos ter consciência de que o capitalismo nunca deixará de ser machista, racista, homofóbico. Faz parte de sua natureza dividir para governar. Nós, mulheres, temos tarefas múltiplas nesta luta: destruir o capital, educar nossos companheiros de trincheira, exigir nossas reivindicações e sobreviver a violência a que somos submetidas. E nunca, nunca, deixar que os homens digam o que é ser mulher.

A mulher, o homem, o sujeito, não é um sujeito transcendental, “é sempre ser de linguagem, isto é, de cultura, isto é, inscrito sob coordenadas de um certo período histórico, de uma certa sociedade, de uma certa disposição simbólica (…)” (p. 312). Transformar a sociedade e ser quem se quer ser!

Léo