Calçada

Folheando ao acaso uma revista antiga, deparo-me com um fato que parece arte.

Uma mulher, mãe de duas filhas, formada em Letras, em um casamento abusivo. O marido a agredia sistematicamente. Não por agressão física, mas a verbal. Agressão invisível. Ele, o provedor da casa. Ela, sem alternativa.

A mulher começa um trabalho com moradores de rua. E se apaixona por um, Fábio. Ele, sem bens materiais, lhe oferece o invisível: amor, compreensão, carinho.

Ela abandona o “conforto do lar”, o pão certo, o banho certo, os móveis, o endereço fixo. Vai para os braços aconchegantes do morador de rua. Entra na dimensão deste enorme exército invisível, sem endereço fixo.

A mulher ajuda Fábio em seu processo de recuperação. Ela presta um concurso público para trabalhar com os moradores de rua. Para sua surpresa, é aprovada. Porém enfrenta uma barreira: precisa abrir uma conta bancária para receber seus proventos. O banco exige um endereço de residência. Ela, rua tal, número tal, complemento: calçada.

Olhei sua fotografia de página inteira: bonita, cheia de anéis e tatuagens. Sorriso largo. A estampa de uma guerreira, que lutou por amor e respeito, que se entregou. A antiga estudante de literatura, que não escreveu um livro, escreveu sua própria história.

Teus olhos tinham algo raro: esperança. Teus olhos tinham luz.

Léo

Roda de leitura

“A leitura é prazerosa (…), mas não é uma atividade fácil (…). A leitura precisa de incentivo, paciência, trabalho e dedicação”. Paulo Lins.

Roda de leitura que participo no bonito prédio do Sesc-Paço da liberdade, Curitiba. Prédio antigo e restaurado, escadarias imensas, piso de madeira. Na praça, onde, recentemente, apresentou-se o Balé Guaíra. Bailarinos de máscaras, roupas coloridas, sob uma revoada de pombas, também num balé.

Foi lá, numa tarde de sábado, que, pela primeira vez, um pequeno grupo discutiu dois contos que eu escrevi: Alice e Bruno.

Fiquei emocionada. Ver meus contos impressos. O que escrevi em silêncio e só, ser lido por outras vozes. Eu como autora e leitora, pois há um afastamento do texto para que se possa vê-lo de outro ângulo. Ouvir os comentários, outras visões, se debruçar sobre os temas. Alice, uma mulher violentada em todos os sentidos e, através de um grupo, o coletivo, e a escrita, se fortalecer e agarrar sua vida nas mãos. Bruno, um jovem professor que arranca a própria vida, e seu gesto fica pairando no ar nos fazendo refletir. Grupo pequeno, porém carinhoso e respeitoso. Contando outras histórias que os textos proporcionaram lembranças. Discussões fortes tanto quanto os teores. Tudo isso dentro da biblioteca, que tantos livros me fornece.

Roda de leitura é um grande aprendizado. Ter respeito com o texto, respeitar o outro. Há de se separar o que se pensa e o que se está escrito. Falar só depois de refletir. Ouvir outras opiniões. Democratizar os ouvidos e a própria voz. Ler em voz alta, porque a leitura, no comum, é silenciosa. Aprender a ler, porque ler é prazeroso, mas exigente. Saborear a discussão de algo que nos arrebata. Saber que, no fundo, é sempre da vida que falamos.

Roda de leitura: troca!

Léo

Um motorista de uber

Saio de Aracaju, 30 graus, e adentro Curitiba, 14 graus. Neste extremo, volto do aeroporto rumo ao centro, com um motorista de uber me contando sua história. Temos tempo, o caminho é longo.

Apesar de sua mãe ter insistido em seus estudos, ele perseguiu seu sonho de ser jogador de futebol. Porém a vida tinha outros planos: se machucou, e aos dezoito anos foi pai de um garoto. Depois nasceram os gêmeos. Ele foi trabalhar em bares e restaurantes e o estudo ficou para trás.

Se separou. Casou-se novamente com uma mulher que gosta muito de esportes e que tem um filho. Ela não teve chance de estudar, cuidava dos irmãos mais novos. E eles tiveram uma filha.

Em 2018 ele lhe ofereceu a chance de estudar Educação Física. Ela agarrou a oportunidade. Boa aluna, se forma este ano. Ela retribuiu: ele começa a estudar Fisioterapia no ano que vem.

São companheiros de fato. Ambos abalados com os efeitos da pandemia: trabalhavam em restaurante, setor duramente atacado. Demitidos. Ele me diz que se reinventou de um dia para o outro como motorista de uber: “não fiquei sem trabalhar nem um dia sequer”.

Todos moram juntos: o casal e os cinco filhos. O mais velho tem 14 anos e a mais nova, 3. “E os filhos se dão bem?”, pergunto. “Sim. Os mais velhos ajudam a cuidar dos mais novos”. Os filhos dele, o filho dela, a filha deles. Todos numa família só.

Ele me conta que no dia anterior, ele e sua companheira, estavam conversando com os filhos mais velhos sobre a necessidade de se estudar. Também fala dos planos do futuro: ela e ele trabalharem juntos com educação física e fisioterapia. Ela ensinando os movimentos. Ele ajudando com os que tem dificuldades. “Queremos dar uma vida melhor para nossos filhos”.

A viagem acaba. Aperto sua mão com força no desejo do melhor para sua família.

Depois pensei: poderia ter lhe dito que a tal da “vida melhor”, eles já a oferecem aos seus filhos. Solidariedade e companheirismo desta família reconstruída.

Curitiba já não me parecia tão gelada. Eu, recolhendo vozes e propagando as histórias dos que me procuram…

Léo

Aracaju

Depois de tanto tempo confinadas pela pandemia, e depois de vacinadas, eu e minha filha nos abraçamos num calor de 30 graus: Aracaju, capital de Sergipe. Não há como descrever este momento. Somos sobreviventes e só por isso, vitoriosas.

Em sua casa, ela faz uma fritada de mandioca – que aqui é chamada de macaxeira – e oferece sua cerveja bem gelada – ela também é cervejeira. E vamos pondo a saudade em dia.

Sua casa tem vizinhança com grandes mangueiras repletas de frutos e pássaros. As vozes de mães ralhando com os filhos manhosos e chorões, músicas em alto volume e de gosto duvidoso, um pastor berrando na rádio sobre um tal salmo 91… Tem noites em que se ouve os tambores de um terreiro nas proximidades, tem domingo com desfile, procissão, de um tal santo que me esqueci o nome… Outras músicas ecoando numa sofrência que dá dó… “a vida como ela é”. Digo para ela que onde moro só ouço carros, motos, escapamentos, e – para minha salvação – pássaros. Pouco ouço vozes humanas. Bem diferente do seu bairro.

Minha filha tem um gato que a adotou. Isso mesmo. Ele apareceu do nada na antiga casa e por mais que o espantasse, ele não ia embora. Ela já se mudou duas vezes, ele sempre com ela. Companheiros. Ele parece que não mia e sim fala. Um miado com jeito de fala.

Conheço uma mulher que adora carne de bode, que eu até então nunca tinha provado. Carne muito apreciada no sertão, onde viveu sua infância. Conta de sua mãe que mora por perto, que tem um roçado, que pariu 10 filhos e sete sobreviveram. Ela é das mais novas. E que até hoje se ajudam em seus caminhos diversos. Família unida. Ela, que tem uma rotina dura: faz estágio de manhã, trabalha como coordenadora de escola estadual de tarde, estuda direito de noite. E ainda acha tempo para ser bem-humorada.

Conheço outra, advogada de um sindicato de luta, de uma categoria duramente atacada. Conta suas peripécias para defendê-la. E outro, que conta muitas histórias engraçadas, que mora em Itapuã. Isso tudo num bar de cervejaria artesanal.

Conheço Barra dos Coqueiros, cidade da outra margem do rio Sergipe, que corta o centro de Aracaju. Cidade do encontro entre mar e rio, recheada de coqueiros. Num bar, assistindo o por do sol, ouço com atenção uma diretora de escola se debatendo com a tal reforma do ensino médio provocada por um governo federal avesso a educação. Reforma que quer transformar a escola ainda mais massificante produzindo mão-de-obra barata para o mercado. Seu companheiro me conta que votou no Bolsonaro. Interessou-me o motivo: era eleitor do PT, mas cansado, queria o novo… que, rapidamente, percebeu que tinha caído numa armadilha. Também toca cavaquinho e me convida para o samba no próximo final de semana, respondo que “não posso ficar…”, já terei voltado para a casa.

Dia seguinte, almoçamos no povoado de São José num restaurante que lembra casa. Comida boa, galinhas e galos e caranguejos no quintal. E um vizinho lavando seu cavalo. Depois, banho num rio largo e bonito, com muitas árvores. Que um garoto entra com seu cavalo, me lembrando Guimarães Rosa.

Numa noite num bar da orla, conhecemos uma turista de Goiânia. Não gosta de lá, muito abafado. Gostou de Aracaju, muita brisa. Seu dilema é que sua filha, que mora com ela, se mudará para Portugal para estudar. Ela, a mãe, nunca morou sozinha. Nós a incentivamos a se mudar para uma cidade que goste e enfrente a aventura de morar só. Ela estava comendo carne de bode e me oferece para provar. Como. Acho uma carne de gosto forte. Mas forte mesmo é ela nos dizer que acha Ronaldo Caiado, governador de Goiás, bonito. Um ruralista, sempre contra o povo, argumento. Ela nem aí.

O mar de Aracaju é de tom marrom. Água se confundindo com a areia. O mar se encontrando com o rio. Há pequenas dunas para se chegar na praia, quase sem árvores, quase sem sombra, num sol escaldante. Praia de corredor imenso de areia, coalhada de conchinhas do mar. Avisto um navio na linha do horizonte e plataformas de petróleo.

Aracaju, encontro das palavras arara e caju. Arara não vi. Caju, saboreei. Delicioso.

Aracaju, meu reencontro com minha filha. Sentimos falta do meu filho. Seria muito bom nós três juntos. Fica para o futuro.

Por enquanto, eu e ela, entre tantas histórias…

Léo

Muitos anos atrás passei o dia inteiro com minha vó no hospital. Eu não sabia que seria seu último dia na Terra. Ela passou em delírios confundindo o passado com o presente, se imaginando em casa e não em um leito hospitalar.

Eu brigando com as enfermeiras, pois acreditava que não estavam fazendo algo por ela. Eu não aceitava o fim, a sua morte, o seu delírio de morte. Queria desesperadamente uma saída.

Fiquei com ela até o final da tarde. Quando chegou uma prima de outra cidade, cedi meu lugar. E minha vó morreu. Percebi que eu não a deixava ir.

Minha vó, tão bonita e forte. Contava o passado com uma força dos detalhes que até hoje me assombra. Eu já não tenho essa memória. Perdi suas histórias. Fico mais com lembranças e sombras e restos. Lembro-me que ela se casou e teve seis filhos, o mais novo meu pai. Esse avô morreu deixando dívidas e filhos pequenos, e minha avó sustentando a família na lavoura. Fez questão de pagar centavo por centavo das dívidas.

Com os filhos criados, ela se encantou por outro homem, e os contrariando, se casou com ele, que também tinha seus filhos. Este é o que conheci e, junto com minha avó, foi meu padrinho de batismo. Ele vendia verduras e frutas em uma carroça percorrendo as ruas. Eu e meus irmãos, muitas vezes, íamos com ele. Era bem divertido. Ele, como menino brincalhão. Depois morreu. Creio que foi a primeira pessoa que eu conhecia que morreu. Meu padrinho me apresentou a morte.

Minha vó foi morar no fundo do quintal de casa com meu tio. Os filhos construíram uma casa para eles.

Lembro-me dela me benzendo com ramos de arruda, me contando suas histórias. E no sol, secando seus cabelos ralos e brancos e longos, sentada numa cadeira no quintal. Depois virou crente e não benzia mais. Mas, sempre linda, mesmo mau-humorada. Como dizia um professor meu: estou velho e tenho todo direito de ser mau-humorado.

Fico pensando que aquela postura que tive no hospital com minha vó em seu último dia, é uma marca minha. Não aceito. Sempre quero mais da vida. Alternativas. Pois guardo em mim o que é possível e não é efetivado. Tenho sede de outra vida, de outra possibilidade. E se acha que a idade me apaziguou, sinto muito. Continuo no caminho contrário: a sede, a fome, a fúria, me povoam desde meu nascimento. Não suporto o medíocre, a terceira via com cheiro de primeira e gosto da segunda. Quero outra saída. Outro modo. E, por vezes, exagero. Como querer que minha avó, com mais de noventa anos, ainda estivesse viva. Por vezes, ainda me sinto naquele quarto de hospital me debatendo com a morte. E, destas vezes, sou eu que deliro.

Mas creio que a poesia reside neste lugar onde tudo é possível.

Ai, minha vó!

“E me vejo somente/ pequena sombra/ sem tempo e nome,/ nisto perdida,/- nisto que se buscara/ pelas estrelas,/ com febre e lágrimas,/ e que era a vida” Cecília Meireles, Realização da vida, trecho.

Léo

Mudar de ideia

Quando conheci Curitiba em 2008 me apaixonei pelo Passeio Público, no centro da cidade. Quando me mudei para cá em 2010, consegui alugar um apartamento que, da varanda, o tenho como companheiro. E uma gigante araucária, símbolo do Estado.

O Passeio é onde as pessoas caminham, correm, passeiam. Tem um lago com peixes e tartarugas. Recentemente abrigo também de quatro patos – que sempre que os avisto sinto uma alegria sem explicação. Pássaros em gaiolas grandes, que segundo placa, são animais que não conseguem mais sobreviverem na natureza, fruto de acidentes ou maus-tratos. Pavão, flamingos com suas cores maravilhosas, gavião, urubu rei, alguns macacos. Refúgio para os bichos e pra nós, humanos.

Já vi borboletas de cores variadas. Um esquilo, que avistei na araucária e depois no chão quando fui caminhar; todos pararam para observar aquele ser perdido por ali. Uma lagarta no caminho, justamente quando eu estava escrevendo sobre o livro de contos de Antonio Carlos Viana, Jeito de matar lagartas; não a matei, claro; só fiquei contente com a sincronia. E, dia desses, fiz alongamento em minha sala, observando um bonito pica-pau na araucária com sua plumagem vermelha. E tem as garças. As graciosas e elegantes garças. Que chegam de mansinho em meados de julho e estão todas aqui em agosto. Em meados de março elas se vão. Para onde? Não sei. De onde vêm? Não sei. E tem revoada de pombas e pássaros no final do dia. Balé aéreo. Tão bonito.

Porém desde o ano passado, acho, começaram uma reforma no Passeio Público. Derrubaram um quiosque enorme, todo de madeira, que tantas vezes bebi cerveja, comi feijoada e tilápia na chapa. Tudo ao chão. Construíram canteiros e mais canteiros de flores, todas “certinhas” demais. Barquinhos com flores no lago. Irritante. Um coreto digital enorme, com cadeiras de ferro. Irritante.

Comecei a pensar como um espaço público é modificado, sem ter nenhuma participação do povo, por um gabinete qualquer. E assim é com a cidade toda. Não dispomos de nenhuma ferramenta onde dizemos que cidade queremos. E não vale as tais audiências públicas que muitas cidades se utilizam, pois não podemos ser chamados só para opinar sobre os detalhes. Teria que ser o todo, incluindo os salários de governantes e juízes, por exemplo. Construir uma cidade. Porque, desconfio, que por trás do “embelezamento” do Passeio Público, há uma linha diretriz de afastamento de pedintes, andarilhos, prostitutas, que também frequentavam o lugar. Claro que o poder público não resolveu a questão – que, em última análise, é fruto da crise, fome e miséria crescente. Resolve escondendo, afastando, “embelezando”. E eu, praguejando.

Numa certa altura, um espaço gramado com árvores, bastante frequentado por andarilhos, começou a ser cercado. Sem nenhuma explicação. E eu, praguejando. As grades pintadas, algumas árvores plantadas, uns banquinhos de madeira…. e eu, praguejando. Nenhuma explicação.

Numa manhã, acordo com latidos de cachorro. Abro a janela. Vejo no espaço cercado, um alegre cachorro brincando, correndo… tão alegre quanto seu dono. E assim, todas as manhãs. O espaço cercado é “espaço para os bichos”. Por aqui tem muitos prédios de apartamentos. E tem muitos cachorros “prisioneiros”, que são levados por seus donos para um passeio, presos por coleiras. No tal espaço, eles correm à vontade, brincam, rolam, latem. É até um espaço de socialização para os humanos, pois vejo os donos conversarem entre si, sentam nos bancos, no chão… É um espaço harmonioso.

Mudei de ideia sobre aquele espaço. Apesar da não participação do povo, das não explicações. O espaço foi uma boa ideia. E gostei de minha capacidade de olhar, perceber, refletir, e …. mudar de ideia. E, olha, que nem tenho cachorro.

Léo

Brincar

"O mar é só mar, desprovido de apegos, (...) / Não precisa do destino fixo da terra, / ele que, ao mesmo tempo, / é o dançarino e sua dança".
Cecília Meireles, Mar absoluto. 

Vi um documentário nacional, Tarja Branca (direção Cacau Rhoden), sobre o brincar. A criança está plena na brincadeira, se joga inteira em descobertas, na precisão de se elaborar um brinquedo. Faz uma pipa, depois a empina. E o sorriso largo ao vê-la flutuando no céu.

Perdemos essa lógica: tudo tem que ser “útil”, pragmático (serve para quê?). Não se brinca, não se perde tempo, não se joga num momento sem pensar em mais nada. Não se sente pleno.

O cientista no laboratório não deixa de ser uma criança. Experimenta, testa, levanta hipóteses. Deixa a imaginação ecoar: e se…?

A questão é que na lógica do capital tudo se transforma em mercadoria, produto. Tudo é para a venda. E o “jogo” científico só é jogado se tiver uma utilidade vendável. Perverso.

A pandemia do coronavírus atingiu a humanidade toda. É como uma nuvem que vai se espalhando pelo planeta e abraçando a todos. Diante de algo mundial deveria ter uma resposta também mundial: cabeças pensantes elaborarem a melhor vacina, fabricação em massa, distribuição em massa. Porém o que impera é a lógica do capital: disputa de laboratórios. O mundo continua dividido em dois: nações ricas vacinando a todo vapor e as pobres vacinando como é possível, com os restos da mesa.

A pobreza se alastra tão assustadoramente quanto as variantes do vírus. Pobreza num sentido amplo. Perda de postos de trabalho, famílias inteiras atirada às ruas, educação mais sucateada, fome.

A falência do capital explícita. Porém sempre transvestida.

Então como brincar sem ter o que comer?

É preciso manter o espírito alerta às barbaridades do presente; perceber e refletir. Brincar ao imaginar outra lógica, outro mundo.

Um mundo como os corais. São animais, mas parecem pedras, plantas. Adquirem cores e formas variadas e bonitas. São abrigo e alimento para os peixes e outros animais. São proteção para os humanos.

A ciência é um método para se pesquisar a realidade. Deve-se pensar na humanidade, na natureza, no planeta, no universo. No todo, no inteiro.

Brincar! Como o mar, que é , ao mesmo tempo, dançarino e sua dança.

Léo

reflexões sobre este mundo de blog

Faz três anos que escrevo neste blog. Confesso que minhas expectativas eram altas. Ou ingênuas. Só via o potencial da ferramenta: troca. Aos poucos fui me deparando com um turbilhão quantitativo: quantos… quantos… quantos. Quantos seguidores, quantas curtidas, quantos posts… A troca, rara.

Fui murchando. Perdendo a vontade de escrever: para quê?

Afinal, escrevo pelo prazer de escrever e pela expectativa de troca, bons leitores. No início tinha um vulcão dentro de mim. Hoje sinto-me mais suave. Meu olhar atento persiste e a poesia – creio – foi incorporada neste olhar.

Sem saber como lidar neste dilema entre expectativas e a realidade apresentada, parei.

Porém hoje de manhãzinha, abri as janelas, o céu quase amanhecendo, a lua ainda pairando, a vontade de escrever voltou. Ainda sem saber como lidar com este mundo de blog. Acho que farei como faço na vida real. Escreverei o que me dá paixão, não me importarei com o quantitativo, procurarei estar sem expectativas. Talvez minha sintonia seja diferente mesmo. E daí? No fundo quero pouco: escrever por prazer e conversar com alguns.

Retorno meio desajeitada…. Refletindo sobre a própria ferramenta. Assim me sinto melhor.

“OBSERVANDO

sim

as horas de trégua

Quando se afiam
as facas”

Eunice Arruda

Léo

Cartas de longe – quarta

Estou muito cansada, exausta mesmo. Um ano de confinamento no epicentro da pandemia. A angústia dos recordes diários de morte, isolamento, governo genocida, que nem deveria ter sido eleito. E as ferramentas que a humanidade construiu pulsando sem que suas potências se efetivem. Tempos difíceis. Tempo cruel.

Volto-me ao passado para ter forças. Uma das coisas que mais gosto é viajar. Sair da rotina, encarar desafios, conhecer lugares e pessoas.

Em novembro de 2019 (nossa, parece tão longínquo… outro mundo, sei lá), Saturno estava em conjunção com a Lua. Saturno visível. Resolvi viajar até Amparo, cidade do interior de São Paulo, pois tem um ótimo observatório. Meus planos eram conhecer a cidade, o observatório, ver Saturno no imenso telescópio, vislumbrar uma fresta do universo, e voltar fortalecida. Porém a vida – como cantou John Lennon – é o que acontece enquanto a gente faz outros planos.

Quando cheguei no observatório uma chuva torrencial caia: Saturno “faltou” ao encontro; estava lá no céu alinhado com a lua mas invisível pelo choro dos céus. E eu chorei também. Uma espécie de abandono, frustração, decepção…

Do percalço construí outras pontes:  vi os telescópios, conversei com Carlos, o físico; Sérgio, o que apresenta a sessão do planetário… conversamos sobre o tempo, universo, filmes. Também conversei com o Paulo, que cuida do lugar, uma espécie de caseiro. Ele era agricultor, não gosta da cidade. Ali, está aprendendo sobre estrelas. Na apresentação, vi os planetas. Gosto dos nomes da mitologia, Marte, deus da guerra, Vênus, deusa da beleza, e Júpiter, lindo… Me apaixonei por Júpiter.

Fiz longas caminhadas pelo Parque Chico Mendes, vi a cidade de Amparo lá do alto. Incrível como das alturas tudo parece harmônico. Tomei uma cerveja num bar e observei as figuras da cidade. Na pequena biblioteca, que estava fechada, tinha uma árvore de natal feita de livros. Bonitinha.

Fui no museu. Várias divisões: hora de brincar, hora de plantar… A cidade se construiu no século dezenove. Plantação de café, imigrantes europeus, escravos. Fotos, instrumentos de trabalho, e o ferro que prendia os escravos, pesado, negro como eles, forte. Lembrei das lutas, quilombo, Zumbi, o homem aprisionando outro homem. O que mais gostei foram de dois painéis. De um lado, lugares, vários textos assinados ou anônimos. A maioria escreveu sobre infância. Tinha textos engraçados, saudosistas, e achei até um poema anônimo: “Em cada rua movimentada deixei/ ali um pedaço de mim”. Do outro lado um painel bonito: o que você tombaria/eternizaria. Não achei nenhuma boa resposta. O mais comum era eternizar a mãe, pai, família, essas coisas. E, num pilar, pequenos papéis te convidando a responder. Deixei lá meu bilhetinho: Eternizaria…. nada. Deixa a vida correr…

Na rodoviária de Amparo, indo embora, duas cenas. Na porta do banheiro, três cachorros grandes. Sorri para um senhor, e ele disse: estão esperando o dono. No banheiro feminino, nas portas geralmente tem escritos de putaria, mas de Amparo, mensagens de ajuda feminista: você é linda, não deixem que falem diferente; não fique num relacionamento abusivo… Amparo, vanguarda feminista, quem diria. Rodoviária de Campinas. Cheguei por volta das cinco e meia da tarde, meu ônibus para Curitiba, às sete. Meu filho e sua companheira foram me encontrar. Eles me deram um livro do astrofísico Neil de Grasse Tyson, sobre as origens do universo, das estrelas: “como você não conseguiu vê-las…”. Foi realmente uma surpresa. Muito carinhosa.

Pensei: a vida é estranha mesmo. A gente mira num alvo, acerta em outro. Como canta Doris Day no filme O Homem Que Sabia Demais (1956, Alfred Hitchcock), “o que será, será”. Eu, para enfrentar este presente trágico, preciso inventar um futuro.

Léo

Cartas de longe – terceira

José Saramago num de seus romances, o personagem diz que a juventude tem energia mas não tem experiência, o velho tem experiência mas não tem energia. Wood Allen questionado sobre a morte responde que continua contra. João Ubaldo Ribeiro, escritor brasileiro, numa entrevista fala dos problemas da velhice, no entanto afirma que a outra alternativa é pior (a morte). Boa parte dos filmes o velho (a velha) aparece como vilão, conselheiro do protagonista, com doença terminal e faz algumas loucuras, ou sendo ridículo.

Tenho 59 anos e tenho questionado muito como se encara a velhice. Não sou daquelas que afirma ser a melhor idade. Bobagem. Cada idade tem suas angústias e delícias. Também não sou consumista e vejo até com tristeza o mercado se apropriando deste período da vida como nicho mercadológico. Pode-se envelhecer preso ao passado ou tentando recuperar a juventude perdida. Também não caio nessa: cada tempo é importante. Tem os céticos; os críticos da juventude como se nada pudesse ser mudado; os que arrotam “no meu tempo era melhor”; os que vivem em função de filhos e netos; os deprimidos; os que se apegam a religião. Não, não, nenhum desses papeis me interessam. “Calculem”.

Nunca trilhei o caminho da chamada “normalidade”. Fui militante de um partido revolucionário e sigo suas diretrizes até hoje, assim sou socialista mas não stalinista. Fui direção de um sindicato de luta, e continuo lutando. Sou feminista, nunca me perguntei se posso fazer tal coisa sendo mulher; fiz e faço o que considero que sou capaz. Sou ateia, acredito na capacidade humana num sentido amplo. Fui casada e faz dez anos que vivo só; gosto da minha companhia, me amo e me respeito. Sou mãe e tenho orgulho dos meus filhos, que seguem suas próprias vidas, e somos parceiros. Escrevo, gosto muito de viajar, ler, e aprender.

Então como envelhecer? As referências são, no geral, ruins. Não quero ser vilã, nem conselheira, nem ridícula, nem alvo de mercado. Sou autônoma e independente, mas preciso do Outro: amigos, amor, leitores.

Pensei: a gente nasce no meio de uma cena, sem saber se é tragédia ou comédia; sem direção; sem script, sem roteiro. A vida não tem ensaio. Viver é mesmo complicado (risos), mas a outra alternativa é pior (risos).

Termino com uma cena de um bom filme: Lucky (de John Carroll Lynch, 2007, USA). “Um dia tudo vai desaparecer. O escuro, o nada”. “E o que podemos fazer?” . “Sorrir”.

Léo