A Casa Verde

“Quando a casa ficou pronta, Dom Anselmo decidiu que fosse inteiramente pintada de verde. (…). De casa em casa, de salão em salão, as beatas cochichavam, as senhoras olhavam para seus maridos com desconfiança, os vizinhos trocavam sorrisos maliciosos e, um domingo, na missa do meio-dia, o Padre García afirmou do púlpito: ‘Prepara-se uma agressão contra a moral desta cidade'”. A Casa Verde, Mario Vargas Llosa.

A Casa Verde é um labirinto. Senti-me embriagada, sonhando, em transe. Perdida no entrelaçamento do tempo. Presente e passado na mesma página. Os fatos não em linha evolutiva, mas aos saltos. Deslumbrada com tantas histórias e personagens nas quase 400 páginas.

Peru, anos quarenta do século passado, durante a segunda guerra mundial. O caucho, árvore que produz um látex, é procurado como fonte de riqueza em plena selva amazônica. Uma luta constante entre cristãos e os chamados “selvagens”, tribos dos aguarunas e huambisas. Mario Vargas Llosa entrecruza dois relatos “ambientados em lugares muito diferentes do Peru: Piura, no extremo norte, cercada por grandes areais, e Santa Maria de Nieva, um pequeno povoado na região amazônica. Como ele mesmo diz (…), ‘Piura é o deserto, a cor amarela, o algodão, o Peru espanhol, a ‘civilização’. Santa Maria de Nieva é a selva, a exuberância vegetal, a cor verde, tribos que ainda não entraram na história, instituições e costumes que parecem sobrevivências medievais'” (p. 408).

O capítulo inicial é descrito com tanta destreza, o narrador tão preso aos fatos, que a gente demora para perceber a violência. Madres e guardas adentrando a selva para roubar meninas dos ditos “selvagens”. As cristãs, numa selvageria, as arrancam de sua tribo para levá-las ao convento num ato de “salvação”: “Madre Angélica distribui os presentes que os aguarunas recebem sem dar mostras de entusiasmo, mas logo, quando as madres e os guardas começam a comer pedacinhos de peixe (…), os dois homens, sem olhar, abrem as bolsas, acariciam espelhinhos e colares, repartem as contas coloridas (…)” (p. 13).

Em troca dos “presentinhos”, o rapto de duas meninas pelos guardas e as madres: “Os dois aguarunas se mantêm dóceis frente aos fuzis (…). As mãos das meninas não alcançam o rosto de Rubio, só seu pescoço, cheio de risquinhos violáceos, e rasgam sua camisa e arrancam os botões. (…). O Rubio, Madre Angélica, e as meninas se desvanecem também entre ondas de pó” (pp. 16-17). As garotas raptadas serão “civilizadas”, ganharão um deus, aprenderão que suas vidas pregressas eram pecado – implantam o pecado em seus corações. Posteriormente servirão de empregadas domésticas, cozinheiras, babás, em casas de gente rica e de classe média. Ou terminarão na Casa Verde como prostitutas. Como a personagem , que primeiro tem um nome cristão de Bonifacia, e termina por se chamar Selvática.

Este romance lembra o rio Marañón, tão bem descrito como se fosse um personagem, com sua força, muitas entradas, lugares secretos. Personagens ricos, mesmo secundários ou somente citados, como Domitila Yara: “Anos depois morreu Domitila Yara, a santeira (…), a beata sempre vestida de negro, rosto velado e meias escuras (…). Onde havia partos, mortes, doenças, desgraças, acudia a santeira com sua imagem e suas rezas. De seus dedos apergaminhados caía até o chão um rosário de contas enormes como baratas” (p. 233). Descrições maravilhosas: “Ao cruzar a região das dunas, o vento que desce da cordilheira se abrasa e endurece: armado de areia, segue o curso do rio e quando chega à cidade aparece entre o céu e a terra como uma deslumbrante couraça. Ali esvazia suas entranhas: todos os dias do ano, à hora do crepúsculo, uma chuva seca e fina como serragem de madeira, que só pára à alvorada, cai sobre as praças, os telhados, as torres, os campanários, as sacadas e as árvores, e assoalha de branco as ruas de Piura” (p. 27).

Esta edição de A Casa Verde vem acompanhada de um ensaio do autor sobre a própria escrita do romance: História secreta de uma novela (Círculo do livro, tradução de Remy Gorga, filho. São Paulo, 1971). Muito interessante ler sobre a espinha dorsal que originou o romance, as aventuras que o próprio autor viveu e que geraram a escrita.

Se há algo que nutre todas as páginas de A Casa Verde é a violência. Num belo e poético relato. Violência. Mas não é esta a história da América Latina desde sua colonização?

Léo

Objetos cortantes

“Eu me corto, sabe? E pico, e fatio, e gravo e furo. (…). Minha pele grita, vê? (…). A única coisa de que tenho certeza é que, na época, era crucial ver essas letras em mim; não apenas vê-las, mas senti-las” Objetos cortantes, Gillian Flynn.

É um livro bruto, violento, forte, e de uma fragilidade explícita. Objetos cortantes ( Editora Intrínseca, RJ, 2015, tradução de Alexandre Martins) é o romance de estreia da jornalista norte-americana Gillian Flynn. Romance que também gerou uma série, Sharp Objects, HBO, 2018, direção Jean-Marc Vallée. A série captura o espírito do livro com pequenas transformações. Gostei, assim como gosto de um novo arranjo para uma música, ou um livro transformado em filme. Uma obra gerando outra. No geral não dá muito certo, por isso as exceções são bem-vindas. O último episódio é que não deu conta do recado: muito rápido, condensado, e fica tudo no ar. O livro é mais redondo. Não deixa ponta solta, e o epílogo é redentor. Gostei mais.

Camille Preaker é jornalista do jornal Daily Post, “quarto jornal de Chicago, relegado aos subúrbios” (p. 8). Cobre assassinatos, ocorrências policiais. Frank Curry, seu editor, pergunta por Wind Gap, cidade de Missouri, cujo “principal negócio é o abate de porcos. Tem cerca de dois mil habitantes. Famílias ricas e escória”. “- Você é qual?”. “- Sou escória. De família rica”. (p. 9).

Wind Gap “é uma daquelas cidades decadentes com vocação para a desgraça”. A desgraça da vez vêm em dose dupla: duas garotas de 9 e outra de dez anos, estranguladas e dentes arrancados. A polícia sem pistas do assassino. Curry quer a “chance de conseguir algo. Grande” (p. 10). Assim o jornal poderia se tornar o preferido de Chicago e ter credibilidade nacional. “Trabalho triste (…). Tempos tristes” (p. 18).

Esta cidade de “abraços frouxos” (p. 40) é onde nasceu Camille Preaker. E também “morreu” quando garota, quando outra garotinha morreu: Marian, sua irmã mais nova. Cidade que abandonou por mais de dez anos, ficou internada em uma clínica devido aos cortes que fazia na pele, e levava uma vida ainda sem rumo. A volta seria “sacudir a poeira”. Procurar a causa e o assassino das garotas seria procurar pelas causas de sua própria morte.

Mergulho no passado. Encarar monstros. Esta é a viagem do romance. O que pude sentir é que esta cidade não abate somente os porcos. As relações pessoais – como a sociedade que vivemos – se baseiam no medo, no controle, na chantagem emocional, no poder. A família, que poderia ser um lugar de afago, abrigo, refúgio; as amizades, de troca e fraternidade; transformam seres humanos em coisas, objetos cortantes. A história de vida numa repetição de abuso que ganha proporções ilimitadas, cuja ponta do iceberg são duas garotas estranguladas e seus dentes arrancados.

A inquietação familiar, a falta de amor, a infelicidade, faz Camille usar o sexo, drogas, bebidas, como fuga, ou refúgio. Porém a dor é tamanha que grava em seu próprio corpo, palavras. Materialização.

Objetos cortantes. Tesouras, facas, estiletes, agulhas, pessoas. Palavras.

Léo

O Estrangeiro

“Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir tanto às prisões, como aos sonos inocentes” Albert Camus, O Estrangeiro.

Há algo neste romance que me escapa. Talvez por ser tão bonito e por ser tão bem escrito. Talvez pelo protagonista ser encantadoramente absurdo. Absurdo e natural. Como a vida. Pois, há algo mais natural e absurdo do que nascer para morrer?

Dividido em duas partes, o romance se desenha em volta de Meursault, o protagonista (O Estrangeiro, Albert Camus, tradução de Antônio Quadros, Abril Cultural, SP, 1982). Escrito em primeira pessoa, só temos seu ponto de vista. O restante fica por nossa conta. Inicia-se com a morte de sua mãe que estava em um asilo. Meursault, vai se mostrando inadequado socialmente, e por isso, sempre envolto com a palavra culpa. Não por ele mesmo e sim por não saber o que se espera dele: “O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. (…). Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: – A culpa não é minha. – Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras” (p. 155). No velório da mãe, só comparece por uma convenção social. A morte é um fato e fim. Não chora. E isso é importante para a segunda parte do livro.

Conhecemos ainda Maria Cardona, “uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara em tempos. Ela também, julgo eu” (p. 175). Seu vizinho, o velho Salamano e seu cão: “Há oito anos que não se largam. (…). Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se” (p. 184). E seu segundo vizinho de andar: “No bairro, corre o boato que vive à custa de mulheres. (…). Em geral, não gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo (…). Acho que diz coisas muito interessantes. Aliás, não tenho nenhum motivo para não lhe falar! Chama-se Raimundo Sintès” (p. 185).

Entre estes, Meursaut vai se esboçando. Tem uma profunda compreensão de todos os pontos de vista e nada o atinge. Gosta de estar com Maria, mas perguntado se a ama… “Desejei-a intensamente (…) perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não” (pp. 193-5). ” (…) e era bom sentir aquela noite de verão escorregar ao longo dos nossos corpos morenos. (…). Maria (…) perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia (…). Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: – Não” (pp. 194-203).

Raimundo, seu vizinho, explicando que queria castigar uma mulher através de um plano, ele responde: “não julgara absolutamente nada (…). A mim, tanto se me dava” (p. 197). Ser amigo de Raimundo ou não tanto fazia, mas como ele insiste, ele escolhe a alternativa que dê menos trabalho: “Está bem” (p. 191). E quando Raimundo espanca a mulher, ele permanece completamente indiferente.

Para Meursault “nunca se muda de vida” (p. 202). Nada é importante, pois nada tem sentido. Então, tanto faz. A primeira parte termina com, praticamente, seu único ato: mata um árabe na praia. Mata, quase por autodefesa. Porém perguntado responde que matou “por causa do sol” (p. 275).

A segunda parte do romance explicita o absurdo social. Crime confesso, um caso simples portanto. Mas Meursault é punido por sua postura diante da vida. Se ele é absurdo, a sociedade se mostra mais absurda ainda. O juiz conversando com ele, empunha um crucifixo de prata agitando-o no ar. De um modo apaixonado, exige do réu o arrependimento e a crença em Deus. É burlesco. “Para dizer a verdade, eu mal seguira o raciocínio dele, primeiro porque tinha calor e porque voavam no escritório grandes moscas que me vinham pousar na cara, e, em seguida, porque me assustava um bocadinho. Reconhecia ao mesmo tempo que esta sensação era ridícula, pois afinal o criminoso era eu” (p. 234).

A imprensa: “Sabe, tivemos que ‘fazer’ um pouco o seu caso. O verão é uma época morta para os jornais” (p. 253).

O julgamento é um grande teatro circense. “Os debates iniciaram-se num dia de sol” (p. 250). A sala abarrotada de gente, e ele interessado em observar um julgamento mesmo que seja o seu. “Geralmente, as pessoas não se interessavam pela minha pessoa. Tive que realizar um esforço para compreender que a causa de toda esta agitação era eu” (p. 252). O promotor se debruça em questões “aparentemente estranhas ao meu caso” e tece sobre sua alma (?). Termina formulando que, ao não chorar no velório da mãe, já escondia um coração de criminoso (?). “Eis aqui a imagem deste processo: tudo é verdade e nada é verdade” (p. 261).

Meursault sente que o julgamento se passa “à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. (…). E tenho coisas a dizer! Mas, pensando bem, não tinha nada a dizer”. (pp. 269-270). Se ele se sentia estrangeiro na vida corriqueira do dia a dia, no julgamento se concretiza. “O presidente disse-me de um modo estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês” (p. 280).

Escrito nos anos de 1940, em meio da segunda guerra mundial, governos totalitários, a França ocupada, Camus nos traça a linha tênue entre o natural e o absurdo. O absurdo da realidade em detrimento de nossos anseios. O natural da vida que pulsa encalacrado num absurdo instalado. Porque – em tempos cruéis como esse nosso – consegue-se perceber que a barbárie pulsa como farsa diante do belo que é a natureza e este planeta azul solto num universo vasto. Compreender? Ainda não temos resposta. Mas é bonita a vida mesmo que seja só para ler este romance. Com descrições fabulosas sobre o tédio de um domingo: “Depois do almoço aborreci-me um pouco e vagueei pelo apartamento. (…). Vivo apenas nesta divisão, rodeado pelas cadeiras de palha um pouco gastas, pelo armário cujo espelho está amarelecido, pela cômoda e pela cama encerada” (p. 177). E também pela bela descrição do domingo visto pela sua varanda. As famílias passeando, suas roupas, as pessoas que voltam do cinema caminhando de acordo com o filme que assistiram: “Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de havia pouco tinham gestos mais decididos do que de costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras” (p. 179). Passagens muito sensíveis: “Mas no quarto do velho Salamano o cão gemeu surdamente. No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio” (p. 192).

Ou o auge do romance onde o protagonista tem uma explosão diante do capelão que insiste em falar com ele. “Então, não sei por quê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer” (p. 295).

Albert Camus, em outra obra, arremata a questão do absurdo: “Acho que o mundo não tem sentido final, mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido”.

P.S. Talvez o que tenha me escapado do romance seja isto: o protagonista foi gerado por esta sociedade absurda, teatral. E ele, ao explicitá-la, é renegado e condenado à morte. É farsa, porém não se pode denunciar. Talvez seja isto. Talvez.

Léo

Fahrenheit 451

“Você nunca lê nenhum dos livros que queima?”

Fahrenheit 451 é a temperatura na qual o papel pega fogo e é possível se queimar livros. Também é o filme de François Truffaut, 1966. E é o romance de Ray Bradbury, Editora Globo, 2012, São Paulo, tradução de Cid Knipel: Fahrenheit 451.

Publicado originalmente em 1953, fala de um futuro dispótico, ficção científica, onde os bombeiros têm sua função alterada: não apagam o fogo, queimam livros. A trama do romance se desenrola pela personagem de um bombeiro, Guy Montag, que ao incinerar tantos livros começa a se questionar por que “livros que pareciam tão estúpidos e indignos de tanta preocupação, pois não passavam de letras negras, papel amarelado e costuras desfiadas” (p. 145) poderiam exercer tanto fascínio em algumas pessoas?

O romance começa pelo conflito: Montag, voltando do trabalho encontra Clarice: “tenho dezessete anos e sou doida” (p. 25). Gosta de sentir o cheiro das coisas, andar a noite toda, ver o sol nascer. “Seu rosto era esguio e branco como leite e havia nele uma espécie de fome delicada (…)” (p. 23). É ela que o questiona sobre queimar livros que nunca leu; fala de como as pessoas se machucam entre si e que conversam sobre nada. E faz a pergunta crucial: você é feliz?

“Feliz! Mas que absurdo!” (p. 28), pensa Montag e a crise está instalada.

A sociedade de Fahrenheit 451 se julga feliz. Se o marido ou a esposa morre, não se chora, casa-se de novo. Filhos, só o necessário para a continuação da espécie, mas se tiver, ficam no internato e visitam os pais três vezes por mês. Caso sinta-se o tédio rondando, dirija em alta velocidade pela noite, mate pessoas que estejam passeando. Ou tome pílulas para dormir. Se tomar demais, errar na dose, há uma máquina para drenar todo o sangue do corpo e substituir por novo e linfas frescos (p. 33). Transforme sua sala em um salão com telas enormes nas quatro paredes com programas ininterruptos ou novelas interativas. Você pode ser até uma personagem, embora não se saiba do que se trata. Escola? “eles passam as respostas para você” (p. 50).

A felicidade aqui é a ausência de conflitos, é a máscara usada bem colada na pele. Uma sociedade que não quer ser incomodada, não quer dilemas. Beatty, o chefe dos bombeiros, é a voz defensora deste estado de coisas. Explica que o rádio, a televisão, o cinema, começaram a “possuir massa” (p. 77). E, porque tinham massa, ficaram mais simples, tudo foi nivelado por baixo. Livros abreviados, condensados, resumidos. Resumos de resumos (…) “Depois, no ar, tudo se dissolve!” (p. 78). Tudo subordinado ao final emocionante. A vida é imediata, o prazer por toda parte. “A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas (…) Por que aprender alguma coisa além de apertar botões (…)?”

Paz! Prazer! “Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os (…)” (p. 83). Não dê ao homem os dois lados de uma questão, dê um. Melhor ainda, não dê nenhum. Não os coloque em terreno movediço, não compare experiências. “Aí reside a melancolia” (p. 84). “Tudo que peço é um passatempo sólido” (p. 85). Por isso os livros são queimados. São inquietantes.

No entanto este mundo é frágil. Uma garota de dezessete anos, uma poesia, são capazes de abalar estas estruturas. Mundo entorpecido. Montag, o bombeiro, começa a perceber que “havia um homem por trás de cada um dos livros. Um homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no papel” (p. 74). E sente vontade de quebrar tudo, de matar. Não quer dirigir em alta velocidade: “Não desta vez. Quero ficar com essa coisa esquisita” (p. 88).

A resistência a este mundo são pessoas que decoram os livros. “O melhor é guardá-los na cabeça, onde ninguém virá procurá-los” (p. 185). São milhares de pessoas nas estradas, nos trilhos abandonados, “vagabundos por fora, bibliotecas por dentro”.

Minha única questão com este romance é a ausência de culpa do Estado, como se não existisse luta de classes, ideologia, manipulação. É como se as pessoas fossem as responsáveis, a tal “tirania da maioria”. O que não o desqualifica como um ótimo romance. Como não ver esse futuro em nosso presente? As telas do salão não seriam as telas dos celulares de hoje? As novelas interativas não seriam as redes sociais? Quando se queimam as árvores, os territórios indígenas, não estariam queimando seus livros? As fotografias e mais fotografias de pessoas sorrindo online não é a mesma felicidade desenhada neste romance?

O autor, Ray Bradbury, afirmou que “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente”.

E você? Caso encontrasse Clarice em seu caminho e ela lhe perguntasse: Você é feliz?…

Léo

Amor de Perdição

“Muito engenhoso é o amor” Camilo Castelo Branco.

Portugal, início do século XIX. Dois jovens de quinze anos se apaixonam perdidamente. Vizinhos. Famílias rivais. Rivalidade frívola, é certo, porém o suficiente para decretar o amor de Simão Botelho e Teresa Albuquerque, impossível. Lembra Romeu e Julieta. Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco (Ediouro – Biblioteca Folha, São Paulo, 1997).

Amor que transforma Simão, filho do corregedor de Viseu. Era valente, punha trinta aguadeiros em derrota. “Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão” (p. 27). Em três meses mudou seus costumes. “As companhias da ralé desprezou-as. (…). O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio” (p. 28). Simão amava. Sua vizinha, rica herdeira. “Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre”. Fez-se homem aos dezesseis anos.

Teresa amou-o também. “Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas às duas famílias” (p. 29). Planejaram um futuro sonhador. Seu pai deu cabo aos devaneios. Quer que se case com seu primo, Baltazar. Ao se negar, encerra-lhe num convento. Teresa se faz mulher em sua decisão férrea: “Esquecê-lo nem por morte” (p. 98).

“Não há baliza racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa”, comenta o narrador. Esse amor impossível, acima da vida, alimentará esse grande romance. Terá peripécias mil, mortes, degredos, emboscadas, sentenças. Um amor que se alimentará de cartas e mais cartas; juras; suplícios; com as certezas que só a juventude tem. Um primeiro amor com as febres do eterno.

Há outro amor de perdição: Mariana, que ama Simão. Um amor sem perspectivas, sem palavras de amor, sem juramentos. Simão a chama de amiga, de irmã. A dedicação de Mariana é extrema, servil. “Mariana o amava até o extremo de morrer (…) sem ter ouvido a palavra amor dos lábios que escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão” (p. 112-113).

Mas não é somente o enredo que encanta. Como Camilo Castelo Branco escreve bem. Não pense que somente lágrimas serão arrancadas. O riso também brota com um narrador irônico e perspicaz. Quando, por exemplo, descreve o pai de Simão: “Domingos Botelho era extremamente feio. (…) faltavam-lhe bens de fortuna (…). Os dotes de espírito não o recomendavam também (…)” (p. 19). Um dos capítulos que mais gostei é do primeiro convento em que Teresa teve como prisão. Uma freira falando mal da outra, pelas costas, claro: impostora, estúpida, trapalhona. “Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo (…)” (p. 67). A situação é tão insólita que Teresa exclama: “Um convento, meu Deus! Isto é um convento?” (p. 69).

O narrador dialoga com o leitor. É mestre no suspense. Conversa sobre o próprio gênero romance: “A verdade é algumas vezes o escolho de um romance. Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte” (p. 150). E escreve trechos muito bonitos: “Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto dela. As pétalas das flores soltas quase se desfizeram, e Teresa, contemplou-as, disse: ‘Como a minha vida…'” (p. 157).

Antônio Houaiss, no estudo introdutório desta edição, lembra que, enquanto Eça de Queirós “já não tinha ilusões quanto á formação histórico-social em que vivia e a que pertencia, ela mesma geradora das mazelas que ele revelava por debaixo e por dentro das aparências supostamente civilizadas”, Camilo Castelo Branco não só ainda tinha ilusões, mas tinha mais: tinha esperança de que, redimindo seus heróis-vítimas pelas provas novelescamente aduzidas, se redimiria ele também, já que, na prova da bondade dos outros por ele revelada, havia a prova de sua bondade. Camilo era assim um crente (…) na redenção social e individual (…)” (p. 7). E o compara ao Balzac, pois oferece um painel quase completo de Portugal na segunda metade do século XIX. Menos isento, “pois acima de tudo foi um moralista ou moralizante” (p. 15).

Houaiss chama atenção para a questão da língua. Camilo não foi um “obediente” usuário da língua, mesmo sendo um dos mais ricos e adequados vocabulários. Usava da intuição, do coloquialismo. “A riqueza da linguagem camiliana tem, porém, uma tal vitalidade, no geral, e é tão comunicante, que Camilo pode ser lido ou ouvido por leitores ou ouvintes portugueses semiliteratos com quase completa intelecção” (p. 13). E Antônio Houaiss conta sua própria experiência: seu primeiro emprego remunerado foi o de ler, “para suados e cansados assalariados portugueses do então fazia pouco inaugurado Copacabana Palace Hotel (…), durante um par de horas a cada dia, à noitinha, romances e romances de Camilo Castelo Branco”.

Se o amor é engenhoso, Camilo é um arquiteto.

Léo

Os Noivos

” — Senhores, dão-me licença para exprimir a minha fraca opinião? Não é só no caso do pão que se fazem maroteiras. E, como hoje vimos que, levantando a voz, é fácil obter justiça, continuemos assim, até pôr o mundo nos eixos” Alessandro Manzoni, Os Noivos.

 

György Lukács (O Romance Histórico, Boitempo, SP, 2011) confere que Manzoni – entre outros – apreende a vida do povo de maneira historicamente profunda, autêntica, humana e concreta. Expressa a essência, a riqueza e a versatilidade desta vida como base da transformação da história (p. 403). Se não bastasse, Manzoni tem dom para invenção da trama, fantasia na representação das personagens das mais diversas classes sociais e autenticidade histórica para vida exterior e interior (p. 92). Os Noivos é a prova.

Este romance histórico ( Editora Abril Cultural, RJ, 1971, tradução de Marina Guaspari), continua Lukács, se detém sobre a vida do povo italiano numa Itália fragmentada, de caráter feudal e reacionária, e em guerra entre suas partes “e dependentes da intervenção de grandes potências externas (p. 92). Manzoni retrata este panorama através do amor de dois jovens camponeses, os noivos, impedidos de se casarem. 

A trama se desenrola em 1628 e mais vinte meses. Começa em “Lecco, na época da nossa narrativa burgo populoso, prestes a se tornar cidade” (p. 11). Renzo Tramaglino e Lúcia Mondella são os noivos. Ele, fiandeiro, camponês e iletrado. Estão com data marcada para o casamento. São impedidos por Dom Rodrigo, fidalgo, morador de castelo, cercado por sicários. É a encarnação do poder, detendo em suas mãos as instituições locais: advogado, corregedor,  e uma parte da igreja. O almoço no castelo de Dom Rodrigo, logo nas primeiras páginas do romance, dão conta do seu poderio: “Dom Rodrigo tinha à direita o primo, Conde Atílio, seu companheiro de devassidão e arbitrariedades. À esquerda sentava-se com profundo respeito, (…), o senhor corregedor (…). Diante dele, dando mostras da mais entranhada deferência, almoçava o ilustre jurista (…)”. “À cabeceira da mesa, nos seus domínios, rodeado de amigos, de homenagens, de inúmeros sinais do seu poder, com um rosto soberbo que gelaria nos lábios qualquer conselho ou súplica” (p. 46), Dom Rodrigo. 

O fidalgo quer impedir o casamento de Lúcia por mero capricho, fruto de uma aposta. Exercício de poder. Para tanto, manda seus capangas intimidarem Dom Abbondio, cura do povoado. “O senhor tenciona casar, amanhã, Renzo Tramagliano e Lúcia Mondella (…). Esse casamento não se realizará; nem amanhã nem nunca. (…) ou quem o realizar não chegará a se arrepender, porque não terá tempo para isso (…)” (p. 13). As peripécias e aventuras começam. Dom Abbondio, covarde, e sua aia, Perpétua, pragmática, são personagens cômicos do romance. “Dom Abbondio –  o leitor já o percebeu – não nascera com fígados de leão” (p. 14). E que personagens! Frei Cristóvão, capuchino, ex-senhoril, será o que intercederá pelos noivos e os ajudará. Outro grande personagem. Como Gertrudes, a freira, e o Inominado, homem de grande poder que se converte.

Esta trama será cenário para grandes acontecimentos da Itália seiscentista. Renzo, fugindo da fúria de Dom Rodrigo, percorre uma Milão em plena revolta dos famintos. Fruto da carestia, pessoas saqueiam padarias, queimam móveis, exigem cabeças. O noivo  fiandeiro transforma-se em líder proferindo grandes discursos, e tem sua cabeça sujeita à forca. Adentra povoados vertidos em cadáveres assolados pela peste. Manzoni nos faz ver por dentro dos acontecimentos, nos faz testemunhas das artimanhas do poder. Participamos ativamente das aldeias saqueadas e amedrontadas pela invasão do exército imperial. Grandes cenas, grandes questionamentos. Um verdadeiro romance histórico do ponto de vista da vida do povo. “Para nós, os pobres, as meadas enredam-se, porque não sabemos descobrir o fio” (p. 28).

O narrador é brilhante. “Seja-me lícito interromper essa celeuma, para formular uma reflexão (…)” (p. 73). Arrasta os leitores pelas páginas, provocando-nos: “Calculem, pois, os meus poucos leitores (…)” (p. 15). “Poupo ao leitor as lamentações, as censuras, as acusações, as defesas” (p. 24). Constrói belas imagens: “uma Ilíada de desastres!” (p. 161); “a lua, entrando pela alta janela, desenhava no soalho um quadrado de luz, recortando em xadrez pelas barras das grades” (p. 174); “o rangido das máquinas juntava-se ao fragor duma cascata” (p. 149). 

Lukács diz que Manzoni é um poeta sóbrio que abriu um “caminho único para a grande concepção da história italiana (…)” (p. 93). Resta-nos admirá-lo. E aprender que a luta do povo por pão e justiça… “A trama é antiga, sabem?” (p. 141).

Léo

O Enigma de Qaf

” (…) o libanês, pegando num pão árabe, começou a explicar que – segundo a crença dos antigos beduínos – a Terra era concebida como um plano circular, à feição daqueles pães. E que Qaf era uma enorme montanha mítica, que circundava, delimitava e mantinha a Terra em equilíbrio” (Alberto Mussa).

 

A leitura de Poemas Suspensos que Alberto Mussa traduziu direto do árabe, levou-me  ao seu romance O Enigma de Qaf (Editora Record, RJ, 2004). Sua principal história está dividida em vinte e oito capítulos, nomeados conforme as vinte e oito letras do alfabeto árabe. E conta ainda com excursos – narrativas mais ou menos relacionadas à intriga dominante – e parâmetros, lendas de heróis árabes. Relacionados, todos, sobre a cultura pré-islâmica.

Lendas, mitos, poemas e o real se entrelaçam num único tecido. Tapeçaria. “A Idade da Ignorância – como ficou conhecida, na história dos árabes, a era que findou com o advento do islamismo – foi um tempo de homens que chegavam a ser mais nobres que os cavalos e de éguas enciumadas da beleza das mulheres” (p. 11-12). Tempo áureo dos poetas do deserto em que a poesia elevou-se em alturas “ainda não atingidas em nenhuma língua, em nenhum século”.

A palavra árabe foi inscrita para designar um nômade montado num camelo em 853 a. C. Para eles, árabe é todo aquele que tem o árabe como língua materna. “São, por esse critério, um único povo, embora estejam divididos em centenas de tribos (…)” (p. 16). As lendas falam de um certo Yarub, o primeiro homem a falar em árabe, e constam que foi seu inventor: “Quero uma língua infinita, em que cada palavra tenha infinitos sinônimos” (p. 16). Os poetas se fartaram nesta busca incessante.

Este povo de poetas foram grandes matemáticos. No período pré-islâmico, acumularam vasto conhecimento em astronomia, criaram a trigonometria, descobriram a álgebra, “e desenvolveram o conceito aritmético mais importante – o do número zero” (p. 147). 

Este livro está recheado de narrativas maravilhosas. Como de Shahrazad, presa numa cadeia infinita de histórias que, no fundo, não passa de uma só. Spíridon, filósofo, que aprendeu a ler papiros egípcios “ao mesmo tempo que dançava nu diante do mar e bebia leite em tetas de jumenta” (p. 88). Zuhayr, que aos “noventa anos, ainda era capaz de dar prazer a onze esposas jovens, simultaneamente” (p. 101). Tem a história do naufrágio de Sinbad; a do Allahdin e da gruta de Ali Babá. 

Qaj é a vigésima primeira letra do alfabeto árabe, inicial de destino e direção. A narrativa principal é a lenda de al-Ghatash que o narrador ouvia de seu avô. “Desde a primeira vez me fascinou aquela história de um poeta que cruzava o deserto em busca de uma mulher desconhecida, de um enigma relacionado a uma fabulosa montanha circular, de um gênio caolho e cego que podia viajar no tempo” (p. 20).

Antônio Torres, na contracapa, afirma que o enigma é o próprio árabe. 

Eu fiquei fascinada.

"Sou imortal:
nunca saberei
quando tiver morrido"
Hárith bin Hilliza.

Léo

O deserto dos tártaros

“Pelos tártaros levantaram as muralhas do forte, consomem ali grande parte da vida, pelos tártaros as sentinelas caminham noite e dia como autômatos” (O Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati).

 

“Não sou nenhum especialista nem acadêmico. Apenas um leitor atento” (p. 5). Faço minhas as palavras de Ugo Giorgetti que apresenta este romance O Deserto dos Tártaros (Dino Buzzati; tradução Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade; Editora Nova Fronteira, RJ, 2005). 

Não conhecia este autor italiano e me foi uma grata surpresa. O que mais se sobressalta é a linguagem poética: “Já pairava na sala o sentimento da noite, quando os medos saem das decrépitas paredes e a infelicidade se torna suave, quando a alma bate, orgulhosa, as asas sobre a humanidade adormecida” (p. 57). Aliada à maestria do autor em sustentar uma narrativa que pouco acontece. E faz disto uma força que me peguei, como leitora, esperando os tártaros como os soldados. Fui envolvida nas descrições exuberantes da natureza, no vasculhar das consciências dos personagens. No questionamento, presente em todas as páginas, do que é a vida, afinal. O narrador vai tecendo ao redor do leitor uma teia no balanço do vai e vem entre expectativa e realidade. No aparente contraponto entre cidade e forte. No primor da dor da existência humana.

O narrador é brilhante, brincalhão. “Um oficial – de costas não se pode saber quem seja, e poderia ser o próprio Giovanni Drogo – caminha entediado, na manhã de primavera (…)” (p. 136). Claro que é Drogo, o protagonista. ” (…) e era um dia qualquer, talvez de chuva, talvez apenas encoberto” (p. 149). “Vira-se a página, passam-se meses e anos” (p. 197).

Este clássico romance europeu foi publicado pela primeira vez em 1940. Aparentemente a história é simples, como nos explica Ugo Giorgetti: “Um jovem militar é designado para servir numa fortaleza nas montanhas, solitária, quase esquecida, que em tempos remotos foi importante defesa contra os tártaros, que costumavam chegar pelo deserto que se estendia ao longo do vale” (p. 6). A narrativa é esta espera pelos tártaros, o tédio, as esperanças e grandes sonhos… que não se concretizam. Giorgetti diz “Até que um dia nos damos conta que fizemos a aposta errada” (p. 7).

Presumo que é mais do que isto. O protagonista, Giovanni Drogo, sente-se um desterrado da própria vida. Sem lugar. “Estrangeiro”. Injustiçado por quase todos que o cercam. Quando está no forte – “que, talvez não sirva para nada (p. 21), que é “fronteira morta” (p. 20) – a cidade é o lugar dos grandes acontecimentos, ideia de felicidade. Estando na cidade: “Era um cheiro doméstico e amigo, contudo, (…) janelas fechadas, de tarefas, de limpeza matutina, de doenças, de brigas, de ratos” (p. 139); espera “por um toque de clarim” (p. 141); “pensava no forte” (p. 145). Não há lugar. Há a espera. Há a expectativa. A vida permeada pelo tempo é sem sentido. Exuberante é a natureza, ricamente descrita, como se fosse um avesso da vida pessoal. “Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca” (p. 181).

Dino Buzzati transforma deserto, tártaros, vida, tempo, natureza, forte e cidade num longo poema.

Léo

Triste fim… de quem mesmo?

“— É bom pensar, sonhar consola. (Ricardo Coração dos Outros).

— Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens…” (Quaresma).

Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto.

 

Em 1911 Lima Barreto publica Triste fim de Policarpo Quaresma (Editora L&PM, Porto Alegre, 2009). Policarpo Quaresma, “mais conhecido por Major Quaresma” (p. 13) é subsecretário do Arsenal de Guerra. Tendo rendimentos além do seu ordenado, era “por parte da vizinhança, da consideração e respeito de homem abastado” (p. 13). Disciplinado, cercado de livros, “vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês”. Estuda por cerca de trinta anos tudo referente ao país: história, geografia, literatura, folclore.

Policarpo não se limita aos estudos. Aprende violão com Ricardo Coração de Leão, mesmo sendo um instrumento nada respeitável: “Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!” (p. 14). Para ele, “a modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede” (p. 15). Na cozinha não queria produtos estrangeiros, trocando-os por nacionais, apesar das reclamações de sua irmã, D. Adelaide: “É uma mania de seu amigo, Sr. Ricardo, esta de só querer coisas nacionais, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!” (p. 23). Sua defesa: “A nossa terra (…) é capaz de produzir tudo (…) Não protegem as indústrias nacionais…” (p. 23). O aperitivo, nacional. O jardim, “como em tudo o mais, o major era em jardinagem essencialmente nacional” (p. 24). Teoria, prática, e “Era costume seu, assim pela hora do café, quando os empregados deixavam suas bancas, transmitir aos companheiros o fruto de seus estudos, as descobertas que fazia (…)” (p. 19).  Onde nasceu? Não se sabia, “Quaresma era antes de tudo brasileiro” (p. 17).

“(…) depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e reflexões, chegava agora ao período da frutificação” (p. 28). Seu primeiro grande ato foi apresentar um requerimento que “o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro” (p. 58). É recebido com burburinho, desordem, riso, inveja, ódio e deboche. Seu tupi lhe rende meses num hospício: “Como é fácil na vida tudo ruir!” (p. 73). Porém não se dá por vencido. Vai habitar um sítio, planeja sua vida agrícola com leituras e aparelhos. Tendo a certeza que a terra daqui tudo dá, enfrenta saúvas, os preços do frete, vinganças eleitorais, a peste ataca as galinhas e “a situação geral que o cercava, aquela miséria na população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras à improdutividade (…)” (p. 132). “Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração” (p. 143). Explode a Revolta da Armada, Policarpo vai para a guerra ajudar Floriano Peixoto, o então presidente: ” (…) sentia, indispensável, necessário que toda a sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para então!… oh!” (p. 159). Resta-lhe a prisão. “Esta vida é absurda e ilógica” (p. 213). Resta-lhe o “triste fim” anunciado no título.

Se Quaresma se muniu de teoria e prática, se fez propostas, se era um homem honesto, “desinteressado de dinheiro, de glória e posição” (p. 60), onde errou? Por que seu fim triste? Erra por não ter uma visão de classe, vê a sociedade como um todo, como se os ricos e pobres tivessem a mesma sintonia. Erra por travar uma luta solitária acreditando que bastam requerimentos, memorandos, argumentos. Peca pela ingenuidade, sem ferramentas para enfrentar as disputas pessoais, a luta individual por cargos e melhores posições, as aparências. Erra por não perceber que sua luta não deveria ser nacionalista e sim internacionalista. O Brasil ocupa um papel no mercado internacional, na divisão social do trabalho, de país colônia, papel para servir o grande capital, o império. A consciência não nos livra do triste fim, é certo. E, as provas são inúmeras. Mas, talvez não lhe restasse a amargura e sim uma certeza que a luta prossegue: “Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido (…). Ninguém compreende o que quero (…)” (p. 213).

Este romance não é somente reflexões. O capítulo em que Policarpo está no hospício é de uma descrição maravilhosa: o dia muito ensolarado e bonito lá fora, e o hospício como uma prisão “que nos tira a nossa alma e põe uma outra” (p. 72). O encontro de Quaresma com Floriano é magistral. “O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, (…), tenaz e conhecedor das necessidades do país (…)” (p. 162). O que encontra era uma figura “vulgar e desoladora (…) todo ele era gelatinoso (…)” (p. 162). O narrador disseca o militar, o chama de ditador, mostra sua verdadeira face: “A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era e de uma tirania doméstica” (p. 164). Olga, a afilhada de Quaresma, é outra grande criação. Entende a loucura de Ismênia, a filha de um general: ” Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o polo e fim da vida (…)” (p. 198). E o escárnio e deboche de que são tratados os militares – generais que falam de batalhas que nunca foram – são hilariantes. 

Lima Barreto foi um escritor pobre e negro. Sua mãe teve uma morte prematura, seu pai enlouqueceu. Não foi reconhecido em sua época. Morreu aos 44 anos.  Mas, nos deixou esta vontade de aprender com os erros de Quaresma e construir um mundo em que Policarpos não tenham um triste fim. Afinal, é o fim de quem mesmo?

Lima Barreto is a beautiful black.

 

Léo

O Amante

“Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. (…) Tenho um rosto destruído”. Marguerite Duras, O Amante.

 

Foi numa madrugada. O sono me abandonou. Há tempos que sigo o meu próprio fluxo. Levantei e liguei a TV. Começa o filme O Amante, de 1992, dirigido por Jean-Jacques Annaud. Sensível. Bela fotografia. Bons atores. O que me levou ao livro.

O Amante, Marguerite Duras (Editora Círculo do Livro, SP), foi escrito em 1984, Paris. O romance é como um jogo de espelhos, o que se lê é o reflexo, e através do reflexo se insinua o real, o subentendido. O tempo presente nunca está presente. O jogo é entre um passado e um futuro; um como reflexo do outro. Frases curtas. Parágrafos curtos. Capítulos curtos. O dito e o suspenso. Memória. Porém, cada frase é cheia de conteúdo.  A primeira e terceira pessoa se alternam na narração como miragens. Mesmo sendo linear, o filme captura o espírito do livro: infelicidade, tristeza, dor, amor entrelaçado com o ódio, o prazer da descoberta do corpo permeado com as duras convenções sociais.

A narrativa é de uma garota de quinze anos e meio escrita por uma senhora de “rosto destruído”. Mora em Vietnã ocupada pela França, na Indochina Francesa. Ela é branca, de família que tinha posse mas perdeu tudo. É pobre, miserável. Fora de lugar. Sem identidade de classe: “Há muito tempo não tenho vestidos que sejam só meus. Todos são do tipo saco, velhos vestidos reformados de minha mãe (…)” (p. 22). Sua relação com a família é um misto de amor, ódio, abandono, solidariedade, força e loucura: “Jamais bom-dia, boa-noite, bom-ano. Jamais obrigado. Jamais falar. jamais a necessidade de falar. Tudo continua mudo, distante. É uma família talhada na pedra, petrificada numa solidez sem nenhum acesso. A cada dia tentamos nos matar, matar” (p. 54). Sua mãe, viúva, uma deslocada professora primária: “Ela deve ter ficado em Saigon de 1932 a 1949 (…). Digo-lhe que de minha mãe vou separar-me um dia, que, mesmo minha mãe, um dia deixarei de amar. (…). Digo que em minha infância a infelicidade de minha mãe ocupou o lugar do sonho. O sonho era minha mãe e jamais árvores de Natal, sempre ela, só ela, fosse a mãe esfolada viva pela miséria ou a mãe descontrolada que pregava no deserto (…)” (pp. 30, 46). Seu irmão mais velho é o poder: “Não posso lutar contra essas ordens mudas de meu irmão. Faço-o quando se trata de meu irmão mais novo. (…). Digo que a violência de meu irmão mais velho, fria, insultuosa, acompanha tudo o que nos acontece, tudo o que temos passado na vida. (…). (…) sofre por não poder praticar o mal livremente (…)” (pp. 53, 54, 59). O irmão mais novo é a fragilidade. Nenhum dos personagens tem nome. Só o irmão mais novo, Paulo, mas isso pouco representa; e personagens femininas secundárias, outros espelhos.

Deste universo brota o prazer. O amante é um aristocrata chinês. Ela descobre seu corpo em um quarto em Cholen, bairro mal-afamado: “Sinto-me mal subitamente. Um pequeno mal-estar passageiro. É o coração batendo forte, descompassado, na ferida viva e fresca que ele acaba de abrir (…)” (p. 49). Ele chinês, rico. Ela branca, pobre. Ele mais velho. Ela, uma garota. Tragédia anunciada. Amor impossível. “Durante todo o tempo da nossa história, durante um ano e meio falamos sempre assim, nunca de nós mesmos. Nos primeiros dias já sabíamos que uma vida em comum não era possível, por isso não falávamos nunca sobre o futuro (…)” (p. 49). Ele, que a ama, é frágil pela riqueza de seu pai. Fraco para abalar as convenções. No filme, ele diz “eu não sou nada sem a riqueza do meu pai”. “Ele me dá banho, me lava, tira a espuma do sabonete (…)” (p. 62). “Fazendo amor, ele chorava. O pai ia viver. Sua última esperança perdida” (p. 80). Ela compreende bem a impossibilidade e sabe as consequências, é vista como uma prostituta infantil, “mas sei que esse quarto é o que eu esperava” (p. 45). O uso, a “caridade”, o dinheiro imperando, o jogo. “Ele lhe arranca o vestido, joga-o longe (…) e a leva nua para a cama. Então, vira-se para o outro lado e chora” (p. 39). Ela só se permite ao choro, no navio, partindo.

A saída da garota é a escrita. “A história da minha vida não existe” (p. 11). “Quero escrever. Já disse a minha mãe: o que eu quero é escrever. Nenhuma resposta na primeira vez. Depois, ela pergunta: escrever o quê? (…). É contra, não é uma coisa meritória, não é trabalho, é uma brincadeira — ela me dirá mais tarde: uma ideia de criança” (p. 23). É sua salvação. A mãe, bem ela, “ela se transformou em escrita” (p. 30).

Marguerite Duras nasceu no Vietnã e teve sua infância num lugarejo próximo a Saigon, de acordo com a apresentação do livro. “Escreveu trinta e cinco romances, quinze peças teatrais e mais de quinze roteiros de cinema (o mais conhecido deles, Hiroshima, meu amor).  Morre em 1996. “Eu preciso que gostem dos meus livros”, diz ela. Eu fui arrebatada. 

Léo