“Quando a casa ficou pronta, Dom Anselmo decidiu que fosse inteiramente pintada de verde. (…). De casa em casa, de salão em salão, as beatas cochichavam, as senhoras olhavam para seus maridos com desconfiança, os vizinhos trocavam sorrisos maliciosos e, um domingo, na missa do meio-dia, o Padre García afirmou do púlpito: ‘Prepara-se uma agressão contra a moral desta cidade'”. A Casa Verde, Mario Vargas Llosa.
A Casa Verde é um labirinto. Senti-me embriagada, sonhando, em transe. Perdida no entrelaçamento do tempo. Presente e passado na mesma página. Os fatos não em linha evolutiva, mas aos saltos. Deslumbrada com tantas histórias e personagens nas quase 400 páginas.
Peru, anos quarenta do século passado, durante a segunda guerra mundial. O caucho, árvore que produz um látex, é procurado como fonte de riqueza em plena selva amazônica. Uma luta constante entre cristãos e os chamados “selvagens”, tribos dos aguarunas e huambisas. Mario Vargas Llosa entrecruza dois relatos “ambientados em lugares muito diferentes do Peru: Piura, no extremo norte, cercada por grandes areais, e Santa Maria de Nieva, um pequeno povoado na região amazônica. Como ele mesmo diz (…), ‘Piura é o deserto, a cor amarela, o algodão, o Peru espanhol, a ‘civilização’. Santa Maria de Nieva é a selva, a exuberância vegetal, a cor verde, tribos que ainda não entraram na história, instituições e costumes que parecem sobrevivências medievais'” (p. 408).
O capítulo inicial é descrito com tanta destreza, o narrador tão preso aos fatos, que a gente demora para perceber a violência. Madres e guardas adentrando a selva para roubar meninas dos ditos “selvagens”. As cristãs, numa selvageria, as arrancam de sua tribo para levá-las ao convento num ato de “salvação”: “Madre Angélica distribui os presentes que os aguarunas recebem sem dar mostras de entusiasmo, mas logo, quando as madres e os guardas começam a comer pedacinhos de peixe (…), os dois homens, sem olhar, abrem as bolsas, acariciam espelhinhos e colares, repartem as contas coloridas (…)” (p. 13).
Em troca dos “presentinhos”, o rapto de duas meninas pelos guardas e as madres: “Os dois aguarunas se mantêm dóceis frente aos fuzis (…). As mãos das meninas não alcançam o rosto de Rubio, só seu pescoço, cheio de risquinhos violáceos, e rasgam sua camisa e arrancam os botões. (…). O Rubio, Madre Angélica, e as meninas se desvanecem também entre ondas de pó” (pp. 16-17). As garotas raptadas serão “civilizadas”, ganharão um deus, aprenderão que suas vidas pregressas eram pecado – implantam o pecado em seus corações. Posteriormente servirão de empregadas domésticas, cozinheiras, babás, em casas de gente rica e de classe média. Ou terminarão na Casa Verde como prostitutas. Como a personagem , que primeiro tem um nome cristão de Bonifacia, e termina por se chamar Selvática.
Este romance lembra o rio Marañón, tão bem descrito como se fosse um personagem, com sua força, muitas entradas, lugares secretos. Personagens ricos, mesmo secundários ou somente citados, como Domitila Yara: “Anos depois morreu Domitila Yara, a santeira (…), a beata sempre vestida de negro, rosto velado e meias escuras (…). Onde havia partos, mortes, doenças, desgraças, acudia a santeira com sua imagem e suas rezas. De seus dedos apergaminhados caía até o chão um rosário de contas enormes como baratas” (p. 233). Descrições maravilhosas: “Ao cruzar a região das dunas, o vento que desce da cordilheira se abrasa e endurece: armado de areia, segue o curso do rio e quando chega à cidade aparece entre o céu e a terra como uma deslumbrante couraça. Ali esvazia suas entranhas: todos os dias do ano, à hora do crepúsculo, uma chuva seca e fina como serragem de madeira, que só pára à alvorada, cai sobre as praças, os telhados, as torres, os campanários, as sacadas e as árvores, e assoalha de branco as ruas de Piura” (p. 27).
Esta edição de A Casa Verde vem acompanhada de um ensaio do autor sobre a própria escrita do romance: História secreta de uma novela (Círculo do livro, tradução de Remy Gorga, filho. São Paulo, 1971). Muito interessante ler sobre a espinha dorsal que originou o romance, as aventuras que o próprio autor viveu e que geraram a escrita.
Se há algo que nutre todas as páginas de A Casa Verde é a violência. Num belo e poético relato. Violência. Mas não é esta a história da América Latina desde sua colonização?
Léo