“A amizade que unia esses quatro homens e a necessidade de se verem três ou quatro vezes por dia, fosse para um duelo, fosse para um negócio, fosse para um divertimento, os faziam encalçarem constantemente um ao outro como sombras (…)” (Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas).
Ah, este Ulisses do século XVII! D’Artagnan e sua odisseia para se tornar mosqueteiro! Alexandre Dumas, romancista negro, segue as pegadas de Homero e nos faz percorrer as ruas de Paris no ano de 1625 (Editora Abril Cultural, São Paulo, 1971). Vai nos guiando pelos bairros de Luxemburgo, Saint-Germain; os corredores e labirintos do Louvre, então morada do rei; tabernas; galerias subterrâneas da Bastilha, e suas salas de interrogatórios e calabouços. Neste cenário, Alexandre Dumas faz brotar o herói d’Artagnan, que o narrador nos apresenta como “Dom Quixote aos dezoito anos” (p. 9).
Este herói gascão ruma para Paris em busca de fortuna e glória. Munido de referências paternas, encontra o capitão dos mosqueteiros do rei, Sr. De Tréville, “(…) um Júpiter olímpico armado de todos os raios” (p. 29). E se depara com “(…) uns semideuses” (p. 29): “(…) Athos como um Aquiles, Porthos como um Ajax, e Aramis como um José” (p. 68), seu sonho personificado: os três mosqueteiros. Que, pelas notas do editor, fica-se sabendo, que não são apenas personagens de ficção, mas baseados em vida.
Nas peripécias desses “(…) incorrigíveis mosqueteiros, esses verdadeiros demônios (…)” (p. 30), vivemos aventuras com d’Artagnan vestido de mulher para se safar, vinho envenenado, emboscadas, raptos, ciladas, tramas, intrigas. E, qualquer coisa, duelo. Bravura, coragem, honra. “Naquele tempo, o conceito de altivez que hoje está de moda ainda não vigorava” (p. 63). Uma “(…) época tão cavalheiresca e tão galante” (p. 109).
Se nos falta Ciclope de Homero, temos o Cardeal de Richelieu. “Um homem de estatura mediana, expressão altiva e soberba, olhos penetrantes (…). E, se bem estivesse desarmado tinha toda a aparência de um homem de guerra (…)” (p. 116). Era o homem dos interrogatórios e que jogava seus inimigos na Bastilha, “(…) não se esconde nada do cardeal; o cardeal sabe tudo” (p. 117). Tinha uma rede de espiões, homens e mulheres ao seu serviço, que faria inveja à CIA e KGB. Um Varys de Game Of Thrones, com sua teia de aranha. “Não tem ele a seu serviço todas as astúcias do demônio?” (p. 187). “Ele apagaria o sol se o sol o incomodasse” (p. 383).
O canto das sereias encantava os navegantes e os faziam perdidos, em Odisseia. Lady Winter entoa cânticos religiosos em seus dias de cativeiro entorpecendo seu carcereiro. “Essa mulher é agente do cardeal” (p. 170). Muitas máscaras: “D’Artagnan (…) não perdera de vista Milady e, pelo espelho, observou a transformação que se lhe operara no rosto. Agora que não se supunha observada, um sentimento semelhante à ferocidade lhe animava a fisionomia” (p. 264-5). Muitos nomes: Ana de Breuil, Condessa de La Fère, Lady de Winter, Baronesa de Sheffield. O narrador acrescenta outros: “a mulher era um monstro” (p. 278); “(…) figura transtornada, pupilas horrivelmente dilatadas, faces lívidas e lábios sangrentos (…) uma serpente (…)” (p. 304). “É um tigre, uma pantera!” (p. 308). A construção das páginas em que Milady está encarcerada em um castelo é brilhante, o leitor se sente completamente enfeitiçado, hipnotizado. Felton, seu guardião, vai se transformando em caça e ela sua caçadora. Um jogo de serpente entrelaçando sua vítima: “Milady reunia então todas as energias, murmurando o nome de Felton, única claridade que lhe chegava ao fundo do inferno em que caíra; e, como serpente que enrola e desenrola os anéis para avaliar a própria força, envolvia antecipadamente Felton nas mil dobras da sua imaginação inventiva” (p. 434). “Crês que sou uma mulherzinha qualquer? Quando me insultam, não me sinto mal. Eu vingo-me, entendes?” (p. 293). “Milady era tão bela, que não encontrava resistência da parte da carne, e tão hábil, que levava de vencida todos os obstáculos do espírito” (p. 433). O narrador é implacável: dos vilões, é a única punida. Esta “Lady Macbeth” (p. 417).
Não há Penélope tecendo de dia e destecendo ao anoitecer. Entretanto, a Sra. Bonacieux é tecida em raptos, conventos, cárceres. Seu marido, Sr. Bonacieux, é o exemplar do burguês, representante da classe que, no século seguinte, tomará o poder. Mas, por enquanto é visto como um mendigo, o não fidalgo. “O caráter de mestre Bonacieux era, fundamentalmente um misto de profundo egoísmo e sórdida avareza (…)” (p. 110). A Senhora, foi alvo do coração de d’Artagnan, perseguida pelo cardeal e vítima de Milady.
O narrador de Os Três Mosqueteiros não se apresenta em versos. No entanto, sua prosa é rica em reflexões, “Há horas que duram um ano inteiro” (p. 451), e, ao mesmo tempo, muito divertida. Não há Atena, “a de olhos glaucos”, não há a “Aurora, de dedos de rosa”. Mas há imagens dignas de deuses: “a aurora lhe pareceu tarjada de luto” (p. 111); relâmpago como “serpente de fogo” (p. 496). O narrador flerta com o leitor, dialoga: “De mais a mais, como sabe muito bem o leitor, de quem não ocultamos o estado de seus haveres (…)” (p. 92). O narrador prorroga a narrativa, usa e abusa do suspense.
Enquanto Ulisses tem sua odisseia na volta para sua morada, d’Artagnan tem suas aventuras na morada nova. Odisseu, “sou um simples mortal transitório”. D’Artagnan, “estou na idade das loucas esperanças”.
São pouco mais de quinhentas páginas de suspense, amizade, vinho, muito vinho, duelos, fugas, aventuras.
Mas, caro leitor, não se fie pelas minhas palavras. Delicie-se com este romance.
“– Senhores (…) estamos prontos?
– Estamos (…).
– Então, em guarda!” (p. 262).
“– Todos por um e um por todos” (p. 82).
Léo