“O impacto desses versos rudes, muitas vezes brutais, me revelou uma sensibilidade poética que até então não imaginava pudesse existir, tão original, tão diferente de tudo que eu já tinha lido” (Alberto Mussa).
Os Poemas
Alberto Mussa foi primoroso ao traduzir direto do árabe Os Poemas Suspensos: Al-Muallaqat (Editora Record, RJ, 2006). São poemas da poesia pré-islâmica “surgidas mais ou menos a partir de 750 (…)” (Alberto Mussa, p. 9) e pertencentes à literatura oral. “Como as epopeias homéricas, como muitos livros da Bíblia hebraica, como os próprios poemas de hoje recitados no deserto, os antigos beduínos concebiam versos sem o recurso da escrita, armazenavam esses textos na memória e os transmitiam oralmente a uma cadeia de recitadores que, ainda oralmente, os difundiam entre as outras tribos”.
O título de “suspensos” tem muito de lendário, “mas dá a exata dimensão da importância desses textos para a cultura literária árabe” (p. 10). Os beduínos – povos árabes do deserto – faziam peregrinações a santuários, como o de Meca, em que se situa a Caaba – “grande pedra preta sobre a qual se construiu uma ‘casa’ cúbica (…) onde havia concursos de poesia”. Dos muitos apresentados, dez poemas premiados “receberam uma honra especial, superior mesmo, ao serem bordados com fios de ouro sobre um manto de púrpura e exibidos sobre a Caaba”. Esses poemas foram reunidos no século oitavo, sendo criações do século sexto, e dois deles (os de Imru al-Qays e Abid al-Abras) “poderiam remontar às últimas décadas do século quinto; e outros dois (os de al-Asha e Labid) talvez pertençam aos primeiros vinte anos do século sétimo” (p. 11).
Seu ritmo corresponde ao andar dos camelos. Não há liberdade temática. Falam da mulher que o beduíno ama, da natureza, da camela e o cavalo, dos prazeres da vida, caça, vinho, e das qualidades essenciais do homem: generosidade, coragem, lealdade, sabedoria. “Não chega a ser lírica, porque não é uma expressão pura de estados de espírito. E nem épica, porque não há narração propriamente dita” (p. 14). Afirma-se a nobreza de caráter do poeta segundo um código de honra. E não eram obra de ficção. Assim ” Tudo neles corresponde a lugares e pessoas concretos, a experiências vividas, a sentimentos reais” (p. 15).
Os poetas não eram criaturas comuns. Tinham a capacidade de receber inspiração dos gênios. Eles eram homens magníficos, heróis de seus poemas. “Não bastava recitar versos: era necessário ter vivido o que se recitava” (p. 16). Tinham reconhecimento social. A poesia era o “arquivo” dos árabes, “a única fonte legítima da história”.
Os Poetas
Selecionei pequenos trechos de cada poeta dos poemas suspensos. E um poeta-bandido, que Alberto Mussa acrescentou como apêndice.
Imru al-Qays. Um devasso. Raptava ou seduzia mulheres virgens e casadas. Bebedeiras e jogatinas. Seu apelido era príncipe errante (p. 21).
"Mas meus companheiros retiveram as camelas diante de mim:
'Não morra de tristeza, mantenha a compostura!'
Como, se meu remédio é o pranto? Terei algum socorro de
vestígios que se esvaem?" (p.26).
Abid, filho de al-Abras. Este, segundo a lenda, teria sido o primeiro árabe a dizer poesia, após um sonho em que encontrava um homem no meio do deserto. “O homem encheu-lhe a boca com pelos de animais e disse: acorda e fala!” (p. 39).
"Tuas lágrimas correm soltas como camelas disparadas; teus
olhos são um odre surrado
e frouxo; ou fonte de água corrente à flor da terra, regando
tudo; ou chuva que corre nos desfiladeiros" (p. 43).
Tárafa, filho de al-Abd. Família de muitos poetas famosos, revelou-se um grande satírico. Dilapidou sua fortuna e se viu reduzido a um simples pastor de camelos. Dirigiu sua sátira ao próprio emir e caiu em desgraça (p. 51).
"E envelheço, empunhando o meu chicote, montado na minha
camela, que dispara quando uma miragem tremula no solo
rochoso, reverberante,
e arrasta a cauda, como faz a dançarina, mostrando ao amo
as barras de um vestido largo e branco, de fio não trançado" (p. 60).
Ântara, filho de Chaddad. Filho de xeque e uma escrava etíope. Desde cedo se distinguiu pela força e bravura. Um homem o insultou por sua mãe ser negra. Ele respondeu: “Mas eu sou poeta e você não!” (p. 71)
"Eis que ela te cativa com a lâmina doce de um sorriso, que,
beijada, é uma iguaria" (77).
Amr, filho de Kulthum. O emir humilha sua mãe. O poeta, sem pestanejar, decepa com um golpe de sabre a sua cabeça (p. 89).
"Se nossos destinos hão de ser cumpridos inexoravelmente,
então, aos destinos!" (p. 93).
Al-Hárith, filho de Hílliza. O poeta declamava coberto por um véu, porque havia contraído a lepra (p. 109).
"Hind acendeu o fogo dentro dos teus olhos, no crepúsculo,
revelando um refúgio no cume da montanha" (p. 113).
Nábigha de Dhubiyan. Nábigha é o apelido que Ziayd recebeu por não ser descendente de outros poetas e sem receber educação poética. Começou a compor em idade madura.
"Ó morada de Maia entre as alturas e as faldas da montanha,
desabitada, onde o passado dura para sempre!" (p. 131).
Zuhayr, filho do pai de Sulma. Homem pacífico e generoso. Era considerado um sábio, “no sentido oriental do termo” (p. 141).
"Elas montaram sobre mantos riquíssimos e finos véus, de
bordas ruivas como se tingidas de sangue" (p. 146).
Labid, filho de Rabia. Ele é provavelmente o mais novo dentre os dez poetas máximos da era pré-islâmica (p. 157).
"Ou Nawar não sabia que, sendo eu capaz de dar os nós mais
firmes, posso também desatá-los?
Nunca me fixo nos lugares, porque não me satisfazem,
a menos que a morte se apaixone por uma certa alma..." (p. 168).
Al-Asha. Dizem que foi um grande apreciador de vinho e que seu túmulo era frequentado pelos bêbados, que derramavam sobre a cova o último gole de sua canecas. (p. 177).
"De tudo isso faço um dia, gozando: pois vêm da experiência
a imensidão do prazer e o poema de amor" (p. 185).
Um poeta marginal: Shânfara. Era um “suluque” – homem sem tribo. Suluques perdiam os vínculos tribais por conduta criminosa ou aviltante. Vagavam pelo deserto buscando hospitalidade ou vivendo de pilhagem. Verdadeiros heróis, pois não contavam “com a proteção dos laços de sangue” (p. 193).
"E me dobro sobre as pregas do meu estômago côncavo como
são entrançados e amarrados os fio do tecelão" (p. 200).
É emocionante ler poemas de tantos séculos passados. Graças aos recitadores que eternizaram estes versos. Graça ao trabalho minucioso e belo do tradutor. Estes poemas suspensos, bordados com fios de ouro, recitados entre tribos, véus, camelas, cavalos, deserto, são como uma máquina do tempo.
Aos recitadores, ao tradutor e aos poetas: Salaam Aleikum (Que a paz esteja sobre vós)!
Léo
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