“Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. (…). Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei”. (Graciliano Ramos, S. Bernardo).
Antonio Candido diz que certos romances asseguram a “sua posição de intérprete”. Creio que S. Bernardo (Record) seja um deles. O panorama do Brasil de 30 é a matéria deste romance.
Diferente de Walter Scott que se volta para um passado glorioso com a figura de um herói, Graciliano Ramos vasculha seu presente (o romance é publicado em 1934), que já é pós-utópico, e elege como protagonista um anti-herói: Paulo Honório. Antonio Candido em Literatura e Subdesenvolvimento aponta que a visão de país “novo” predominava entre nós até 30. Nos anos 20 com o desenvolvimento industrial, o sonho de que a modernização do país tiraria as massas miseráveis da marginalidade foi alimentado por muitos. Raymundo Campos, em História do Brasil, descreve o nascimento da classe operária no país. Como um corpo estranho na sociedade brasileira, sem legislação regulamentando suas atividades, essa classe se organiza em associações de ajuda mútua, publicações de jornais próprios, greves, Confederação Operária Brasileira em 1908, fundação do Partido Comunista em 22 e o Bloco Operário e Camponês em 27. No início da década de 20 já se somavam 300 mil operários. É um país que mudava com o desenvolvimento industrial, aumento da urbanização, configuração da burguesia, classe média e o proletariado. Luís Bueno (Uma História do Romance de 30) diz que “em certo sentido” a crença no desenvolvimento industrial “alimentou os movimentos sociais que desembocaram na revolução de 30. O resultado, no entanto, se revelou frustrante. (…) o que salta aos olhos é o atraso e a exclusão que a modernização já implementada não consegue encobrir”. Segundo Bueno, se nos anos 20 o Brasil era o novo, nos anos 30 essa visão já tinha envelhecido. Se a geração dos modernistas de 22 era utópica, a de 30 constituiria numa arte pós-utópica.
Numa espécie de Fausto do sertão, Paulo Honório põe essa modernização em andamento e transforma a fazenda S. Bernardo: novas máquinas, novas técnicas, novas culturas. Fausto de Goethe, em sua terceira metamorfose, é o fomentador segundo Marshall Berman (Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar). Numa linguagem política pós – 1789 crê que é absurdo o mar despender tanta energia apenas se movendo para frente e para trás “sem nada realizar!”. Parece ser com os mesmos olhos que Paulo Honório vê S. Bernardo, seu “fito na vida”. Com a mesma energia de Fausto a transforma de terra abandonada em produtora de mercadorias, incluindo flores e frutos. Assim como o mar que não serve para nada se nada realizar, a terra é despojada de toda beleza e o que vale é sua serventia para o enriquecimento. “Efetuei transações arriscadas, endividei-me, importei maquinismos e não prestei atenção aos que me censuraram por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei pomicultura e avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem” (S. Bernardo). É o espírito burguês pragmático e utilitarista: tudo e todos devem estar a seu serviço. Domingo era dia de trabalho. Feriados são desperdícios. A escola é construída somente como moeda de troca com o governador. Assim como a capela. “A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram também capital” (S. Bernardo). Suas relações pessoais também se baseiam nos mesmos princípios. Casa-se para ter um herdeiro de seu patrimônio. Para garantir elogios na imprensa, “cem mil-réis”. Com os amigos: “Ó Gondim, faça-me um favor. (…) Azevedo Gondim resistiu, encarecendo o serviço que ia prestar”. Sobre mestre Caetano, trabalhador doente: “A verdade é que não preciso mais dele”.
Paulo Honório cresce órfão, é guia de cego, vende doces. Aprende a ler na prisão. Depois de “três anos, nove meses e quinze dias na cadeia (…) pensava em ganhar dinheiro”. Tira título de eleitor e empresta cem mil-réis de um agiota e chefe político. “A princípio o capital se desviara de mim, e persegui-o sem descanso, viajando pelo sertão (…), realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, (…) e efetuei transações comerciais de armas engatilhadas”. Ele ascendeu de classe social cumprindo uma das máximas da revolução burguesa, trânsito entre classes. É um homem da modernidade que conjuga o verbo ter. “Acham que andei mal?”. Percorre o mesmo trajeto em que a burguesia conseguiu se estabelecer como classe dominante: conquista, dominação, rapina à mão armada, o predomínio da força bruta. Como nos lembra Marx em O Segredo da Acumulação Primitiva.
Pelas páginas de S. Bernardo desfilam as vozes da década de 30 no Brasil. Paulo Honório, a voz da classe dominante atingida pelos movimentos liberais da chamada revolução de 30, mas também é a voz do que transita entre classes sociais. Madalena, a voz da classe média, dos que fizeram a revolução. Padilha e Padre Silvestre, com alguns caboclos da fazenda, aderem ao processo revolucionário. João Nogueira, o advogado, clama por uma elite no poder. Dr. Magalhães, juiz, clama pelas leis. Seu Ribeiro, completamente sem lugar, clama pela volta do Império. Mesmo os caboclos sem voz no romance espelham a sua condição no país: são trabalhadores rurais assalariados tratados como antigos escravos.
Mas, a beleza de S. Bernardo também se estende pelas questões literárias do período. Os dois primeiros capítulos são dedicados a questão da diferença entre a língua falada e a língua escrita. Há um jogo de tempo no romance, em especial o capítulo XIX, que é primoroso. Sua linguagem é dura, tom seco, e, ao mesmo tempo, poético. Como é escrito por um protagonista em crise, abalado pela revolução de 30 e por Madalena, temos oportunidade de ler um narrador ardiloso e que brinca com o leitor dizendo meias palavras. Um narrador que valoriza o concreto, o que dá dinheiro. E, ao escrever, realiza algo que despreza. Escrever é um processo de reflexão, de busca de sentido, não gera lucros. Um narrador irônico: “usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível”. “- Então para que escreve? – Sei lá!”.
S. Bernardo questiona a fundo a modernidade. Paulo Honório, nosso anti-herói, é uma prova de que não basta conjugar o verbo ter, se modernizar sob os parâmetros europeus, cumprir um papel de terceiro mundo na divisão internacional do trabalho. E que os caminhos solitários de Paulo Honório e Madalena só nos levam a crises gigantescas ou suicídio político e social.
Léo