Balzac

“- Mas (…) Paris é um lodaçal?”

O Pai Goriot, Balzac.

 

Paris 1819
Caminhe em uma avenida em Paris, 1819, Bellange. In: magnolia box.

Estamos em 1819, Paris. O período é o da Restauração, monarquia constitucionalista. Uma coligação de potências europeias derrotou Napoleão em 1814. Época bem conservadora, porém, com constantes perturbações e agitações civis. Passa-se entre 1789, revolução em que a burguesia toma o poder político nas mãos, e 1848, quando o proletariado surge como classe social e “a maré das revoluções populares obriga as burguesias europeias a reconhecerem o particularismo do próprio interesse” (Schwartz, Roberto. Um Mestre Na Periferia Do Capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, p. 167).

O cenário é uma “pensão burguesa para os dois sexos e outros” (p. 11), a Casa Vauquer, na periferia de Paris. A proprietária é a senhora Vauquer, e “toda sua pessoa explica a pensão, como a pensão implica sua pessoa” (p. 14). Os internos são em número de sete. Dentre eles Pai Goriot, um velho fabricante de massas; Eugène de Rastignac, estudante de Direito; e Vautrin, que se dizia ex-negociante. A pensão é descrita em detalhes: “(…) ali reina a miséria sem poesia” (p. 13). Entretanto “uma tal reunião devia oferecer, e oferecia, em miniatura, os elementos de uma sociedade completa” (p. 21). E, como “há muitos mistérios numa pensão burguesa!” (p. 36), O Pai Goriot, de Balzac (Editora Ediouro), é um romance imprescindível.

Pessoalmente tenho dificuldades numa narrativa em que não se adere à nenhuma personagem. Não há o bom, não há bondade, não há o certo. O que se encontra são as entranhas de uma sociedade onde “o dinheiro é a vida” (p. 179). A nobreza está perdendo o poder e empobrecendo. A burguesia está tentando se afirmar e é desprezada pela nobreza: “(…) há pobres burgueses que, usando nossos chapéus, esperam ter as nossas maneiras” (p. 69). As mulheres: “Mas, sair àquela hora, a pé ou de carro, não seria perder-me? Senti a infelicidade de ser mulher” (p. 152). Há compra de títulos, burguês barão, burguês conde. Os casamentos são negócios e já pressupõem amantes. Os empregados são muito parecidos com os patrões em seus vícios e visão de mundo. O romance foi escrito em 1834.  Na apresentação do livro desta edição, afirma-se que Balzac “tinha acabado de encontrar a ideia e o mecanismo que lhe permitiria construir o mundo romanesco de A Comédia Humana. E nos oferece: “Viu o mundo como ele é: as leis e a moral impotentes para com os ricos, e viu a fortuna a ultima ratio mundi” (latim: argumento supremo do mundo) (p. 70). “Paris é Paris, percebe?” (p.151).

Balzac é o que nos salta aos olhos. Tão bela quanto a exposição deste lodaçal é a beleza das artimanhas da arte de narrar. Brinca com o leitor: “Assim fareis vós, que segurais estes livros com vossas mãos brancas e mergulhais numa poltrona macia pensando: Talvez isto me divirta” (p. 10). Brinca com a noção de romance, ficção, verdade: “Ah! Sabei: este drama não é ficção nem romance. All is true” (p. 10). Há descrições maravilhosas como esta: “Para explicar o quanto esse mobiliário está velho, rachado, apodrecido, oscilante, carcomido, maneta, zarolho, inválido, moribundo seria necessário fazer descrição que retardaria demais o interesse desta história, o que o leitor apressado não perdoaria”. Dialoga com outros autores como Homero, Walter Scott, Rousseau, Voltaire, Chateaubriand, Molière. Há canções populares. O realismo e o romantismo: “Cavalo puro-sangue, mulher de raça, tais eram as locuções que começavam a substituir os anjos do céu; as figuras ossiânicas, toda a antiga mitologia amorosa repelida pelo dandismo” (p.33-4).
Se a literatura mistura continuamente o mundo real e o mundo possível, como afirma Antoine Compagnon, “ela se interessa pelos personagens e pelos acontecimentos reais (a Revolução Francesa está bem presente em O Pai Goriot), e a personagem de ficção é um indivíduo que poderia ter existido num outro estado de coisas” (O Demônio da Teoria. Editora UFMG, p. 133). Marx tinha planejado “um estudo completo sobre Balzac” (Eagleton, Terry. Marxismo e Crítica Literária. Editora Unesp, p. 12). “Engels observou (…) que o genuíno personagem deve combinar a tipicidade com a individualidade; e tanto ele quanto Marx consideram essa uma grande realização de Shakespeare e Balzac” (Eagleton, p. 58).

Em Balzac nada é superficial. Vasculha a alma de Paris com profundidade e ironia. Percebe “a mão de ferro sob a luva de veludo” (p. 99). É de tal forma mordaz que não há redenção: “Quem decidirá o que é mais horrível de se ver, corações secos ou crânios vazios?” (p. 10).

Léo