menino

olhos, como buracos negros,
sugando tudo ao redor,
sedentos

herói imperfeito como nós
luta com a alegria de uma criança
sonhando verão em pleno inverno

vê as estrelas imaginando
um universo povoado de seres
e,
insatisfeito com os limites desta vida,
saboreia o prazer
de uma boa conversa
regada à cerveja

menino travesso,
o que posso te ofertar?
meu coração
e um pouco de poesia
que sessenta anos
não é mole não!

Para Laércio Pereira, meu irmão!

Leonilda Campos

solidão

um cão latindo na madrugada
sem dono, sem portão para entrar
só
acompanhado pelo porteiro da noite
de um prédio de apartamentos
que o deixa ali
vigiando outros solitários

a ave rara
a planta singular
o animal quase extinto
o que está no topo
este planeta azulzinho

talvez este universo
talvez um disco voador...

e a solidão
de quem traça estas linhas
tecendo poema
como companheiro

Léo

conto

o pássaro, na madrugada,
começa seu canto
para que os humanos acordem
sob seu manto melódico

ninguém presta atenção
vida apressada
uns, pela labuta da sobrevivência
outros, voltados para sua vida medíocre
ninguém presta atenção

o pássaro
toma a cor das folhas secas...
entristeceu
e ninguém presta atenção

mas o pássaro
não prestou atenção
no poeta
que o cortejou da janela

o poeta ficou tão encantado
com o pássaro e sua canção 
que fez um poema

Léo

Calçada

Folheando ao acaso uma revista antiga, deparo-me com um fato que parece arte.

Uma mulher, mãe de duas filhas, formada em Letras, em um casamento abusivo. O marido a agredia sistematicamente. Não por agressão física, mas a verbal. Agressão invisível. Ele, o provedor da casa. Ela, sem alternativa.

A mulher começa um trabalho com moradores de rua. E se apaixona por um, Fábio. Ele, sem bens materiais, lhe oferece o invisível: amor, compreensão, carinho.

Ela abandona o “conforto do lar”, o pão certo, o banho certo, os móveis, o endereço fixo. Vai para os braços aconchegantes do morador de rua. Entra na dimensão deste enorme exército invisível, sem endereço fixo.

A mulher ajuda Fábio em seu processo de recuperação. Ela presta um concurso público para trabalhar com os moradores de rua. Para sua surpresa, é aprovada. Porém enfrenta uma barreira: precisa abrir uma conta bancária para receber seus proventos. O banco exige um endereço de residência. Ela, rua tal, número tal, complemento: calçada.

Olhei sua fotografia de página inteira: bonita, cheia de anéis e tatuagens. Sorriso largo. A estampa de uma guerreira, que lutou por amor e respeito, que se entregou. A antiga estudante de literatura, que não escreveu um livro, escreveu sua própria história.

Teus olhos tinham algo raro: esperança. Teus olhos tinham luz.

Léo

escavação

desvendar a arquitetura da noite
sem se deixar
distrair pelas cores
ser sensível aos contornos

escavar a singularidade
transformando o negativo
no positivo da compreensão

dosar serenidade
com as inquietações da vida

presente ganhando sentido
e profundidade pelo passado
tecendo futuro

chão coberto de lilás
nuvens brancas
traçando seus desenhos

escavar o novo

Léo

P.S. Estou lendo Um antropólogo em Marte - sete histórias paradoxais, Oliver Sacks, 
tradução Bernardo Carvalho, Companhia das Letras, SP.