“O mundo, para mim, é o mundo, apenas, Graciano: um palco em que representamos, todos nós, um papel, sendo o meu triste” (O Mercador de Veneza, Shakespeare).

Cyrano de Bergerac esgrima com a espada e com versos. É uma peça de teatro escrita por Edmond Rostand (Editora Abril Cultural, 1983), apresentada como uma “comédia heroica em cinco atos”. Os quatro primeiros atos se passam em 1640 e o quinto, em 1655. Foi escrita no final do século XIX e sua primeira apresentação ocorreu em 1897.
A história é conhecida. Roxana é amada por dois homens: Cristiano, belo na aparência, e Bergerac, belo na essência. Cyrano abre mão de seu amor e “empresta” seus poemas a Cristiano por quem Roxana está apaixonada. Cristiano é belo, mas sem “voz”. Cyrano é belo, mas seu nariz é uma “hipérbole”.
Cyrano de Bergerac é poeta, galhofo, gentil, exímio com a espada, defensor dos fracos e oprimidos. Não se rende:
“Já vos disse uma vez, e duas! Vá terceira:
Não! Não tenho patrão…”.
O texto é veloz, em ritmo de uma luta de espadas. Sofisticado e simples ao mesmo tempo. Engraçado, lírico, poético. Muitas referências à mitologia grega. Esta edição é rica em notas onde descubro que Diógenes é um filósofo grego que viveu no século V a. C. Levava uma vida de máxima simplicidade, percorrendo as cidades descalço, dormindo ao relento ou usando um tonel como abrigo (não lembra Chaves?). Proclamava o desprezo pela humanidade e, certa vez, foi visto com uma lanterna acesa na mão, em pleno dia, afirmando estar à procura de um homem. Se ele conhecesse Bergerac…
Tem Ragueneau, o pasteleiro que é pago em versos escritos no papel. Sua mulher, Lise, mais pragmática, os usa como embrulhos dos pastéis de nata. O feijão e o sonho:
“Lise: E não devo tirar ao menos um provento
Do que me deixam cá por triste pagamento
Os escritores maus de linhas desiguais?
Ragueneau: Formiga, que ofendeis cigarras divinais!”.
Tem receitas de “tortazinhas de amêndoas” em versos. Tem cartas de amor:
“Essa carta de amor que eu faço a vida inteira,
E que refaço em mim cem vezes, de maneira
Que, se puser minh’alma ao lado do papel,
Basta-me só tirar-lhe a cópia bem fiel”.
Este drama de cavalaria personifica vários ideais do romantismo. Roxana é a perfeição, bela, inteligente, ardilosa, valente. Além dos protagonistas, também é amada pelo vilão, o conde De Guiche. Exige também o perfeito. Não quer somente a beleza externa de Cristiano. Como a mulher real que inspirou Rostand, quer a beleza das palavras: “(…) Quer frases bem-feitas, versos, paradoxos…”. Quem faz a apresentação do livro afirma que ela fica com “um amor duas vezes perdido”. Cyrano é um herói trágico. Vence só um batalhão de cem homens. Em plena guerra passa a linha do inimigo para entregar cartas de amor, escritas por ele e assinadas por Cristiano, cumprindo promessa à Roxana. É a força do indivíduo que se sobrepõe. O indivíduo que incorpora todos os ideais, menos o da beleza física. Cyrano é a força das palavras. De Guiche é o vilão. Mas a vilania mesmo é o do mundo real imperfeito.
“De Guiche: Hoje um poeta é para nós um luxo que vai bem:
– Quereis vós ser o meu?
Cyrano: Não, senhor, de ninguém”.
Ficção e realidade se entrelaçando

Cyrano existiu e escreveu. Nasceu em Paris em 1619. Era espadachim, poeta, escritor. E tinha um nariz “tão extraordinariamente grande que lhe tomava parte considerável do rosto” (apresentação do livro). Edmond Rostand pensava em escrever uma peça sobre esta lendária figura. “Mas a ideia só se tornou clara a partir de um incidente (…). Rostand conheceu um jovem que falou de seu amor não correspondido e lhe pediu conselhos para conquistar a amada indiferente”. O jovem não usava as palavras com maestria. Rostand o ajudou. “(…) imediatamente relacionou a situação com a infeliz história sentimental de Cyrano de Bergerac (…)”.
Cyrano de Bergerac foi escrito em versos numa época em que isso não era mais recorrente. E os ideais românticos tinham sido ultrapassados, “banidos da arte pelo princípio realista”. Por isso na estreia o clima era de total pessimismo. “Pouco a pouco, a expressão tensa e sarcástica de quem chegou para vaiar e criar confusão desaparece dos olhos dos expectadores. (…). Ao fim do primeiro ato, não pairam mais dúvidas sobre o sucesso. Ao final do quinto, os aplausos explodem num estrondo que há muito tempo não se ouvia (…)”.
Cyrano estava na boca dos parisienses, “que recitavam as falas pelas ruas, pelos bares, pelos salões”. Numa apresentação, o ator exausto, “esqueceu-se de dizer quatro versos no final de uma fala. Um expectador levantou-se, indignado, e reclamou: ‘o texto, senhor, o texto! ’”. Cyrano de Bergerac saia “das páginas da história, para encarnar, aos olhos de todos, o próprio ideal do povo francês”.
Como diz uma personagem, há “nomes que hão de viver enquanto o mundo exista!”. Cyrano de Bergerac é um deles: “Meu coração é grande, é fácil de encontrar”.
Léo