"Vive-se. Se se é uma chaga viva, nervo exposto, tontice. Ninguém vê. Meu trabalho tem sido, quando presta, disfarçar isso. (...). Nelas (as noites), expludo". João Antônio.
João Antônio vem na esteira de Lima Barreto. Acrescento que sua escrita me lembra Graciliano Ramos. Antonio Candido dá a letra: “João Antônio cria uma espécie de normalidade do socialmente anormal, fazendo que os habitantes de sua noite deixem de ser excrescências e se tornem carne da mesma massa de que é feita a nossa. O seu submundo é um mundo como outros” (Melhores Contos, João Antônio, Editora Global, S.P., 2001, verso da capa). “Calculem”.
Grande contista. Percorre ruas, bairros, favelas, becos, de São Paulo e Rio. Mostra os tipos, não como observador, como um deles. As gírias, o dia a dia da língua da malandragem, vão ganhando tom poético. O submundo é um poema a céu aberto. Escancarado. Se o esgoto cheira mal, ele mergulha. Furioso, mostra os desdentados, famintos, “tudo gente de sonho caído” (p. 195). Os cortiços e barracos pintados com a paleta de cores de um Portinari. “Um caldeirão” (p. 136).
Merdunchos mergulha no mundo da sinuca: “Então, a sinuca sempre caminhou assim como um troço esquecido. Quando realmente ela representava a concentração de um tipo que fica muito próximo do marginal, que é o lúmpen, o cara marginalizado mesmo” (p. 91). Um “lugar lúdico” que escapa ao intelectual, com caras que só achava graça em beber cerveja dentro de um salão de sinuca. “Porque ali via alguma grandeza na vida” (p. 94). Em Visita – lindo – arremata: “O mundo de dimensões do pano verde de uma mesa de sinuca” (p. 125).
Paulinho Perna Torta vasculha recantos e bocas-do-inferno de São Paulo. Os tipos. Como Laércio Arrudão: “E foi lá. Engraxando lá uns tempos (…), que eu conheci, bem ajambrado e já senhor, no terno claro de brilhante inglês, que fazia a gente olhar, mão luzindo um chaveiro e dentes brancos muito direitinhos, um mulato muito falado nas rodas da malandragem, professor de picardias, dono de suas posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num macio rebolado! Laércio Arrudão” (p. 137). Que ensina: “… quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o dinheiro interessa. Só ele é positivo. O resto são frescuras do coração” (p. 127). Paulinho com sua “magrela”: “Atravesso essas ruas de peito aberto, rasgando bairros inteirinhos, numa chispa, que vou largando tudo para trás — homens, casas, ruas. Esse vento na cara…” (p. 139). “Lá dentro, faço mil e umas, acabo me esquecendo de dar um pente nos cabelos”. Paulinho, de engraxate, sem casa pra morar, “aprendi carteado, faço trapaça, marmelo, sociedade e qualquer negócio. Tenho vocação” (p. 153). “Cresço a galope. Aos vinte anos, a crônica policial já me adula. ‘Perigoso meliante’. Trouxas…” (p. 154). O conto me lembrou Paulo Honório, S. Bernardo, Graciliano Ramos.
A Lapa Acordada Para Morrer. “Quando o oitocentismo começou a desmaiar, a Lapa deu uma guinada. Começou a acender as suas luzes de boêmia, amante e malandra” (p. 103). Desbrava toda a história desse bairro carioca. Seu código na noite: “– Bala não se perde na Lapa e também não erra o destino” (p. 109). Lapa de Manuel Bandeira, do atelier de Portinari. “Chico Alves ali principiou carreira (…)” (p. 102). “Pixinguinha começou suas apresentações aos quatorze anos, ainda de calças curtas, tocando flauta (…). Heitor Villa-Lobos fez suas primeiras composições no leito da Lapa, no teclado de velhos e encrencados pianos das hospedarias francesas” (p. 103). “Um malandro maldito, contudo, continua a ser a mais curiosa e independente figura da Lapa de todos os tempos. Madame Satã misturava valentia, ousadia, toxicomania e sodomia (…). Era um cordeiro entre os malandros, mas reagia como um demônio diante da polícia (…)” (p. 104). Fala ” (…) de uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos compridos no passado” (p. 105-6).
Quisera escrever um conto com João Antônio como personagem…
Vai, ave noturna, “malandrando os seus dias”, e faz do céu um alvoroço.
Léo
Adoniran Barbosa entra na fila. Rsrs
Eu estou para terminar de ler um livro cujo o ambiente de fundo é a cidade de São Paulo. Algumas cenas são passadas neste submundo. Vamos ver
se conseguirei escrever.
Algumas palavras do João Antônio aqui no seu post fez-me lembrar as do livro que estou a ler. Isso faz-me pensar que um escritor só conseguiria escrever sobre este submundo vivenciando por um extenso tempo. Daí, volto ao q eu disse sobre “vamos ver se conseguirei escrever”, pq não sendo escritora nem tendo vivenciando este mundo em particular, é missão difícil. Rsrs
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Adoniran… excelente lembrança. Sobre a sua escrita do livro que está lendo, uma coisa é certa: você tem o olhar, inclusive para provocar nós, leitores.
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A verdade de que a linguagem não me ajudaria a ler o livro. A menos que tenha sido traduzido para o espanhol. Se eu confiar no que você descreve, é uma história interessante. Bem, espero quando você chegar com suas histórias para continuar conhecendo o Brasil, acima de tudo, as emoções de seus personagens que dão vida à sua história. Um abraço
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Sempre gentil… Obrigada. Saudações poéticas.
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