Um Machado!

Para Luciano e Viviane.

 

“os fios invisíveis do meu poema” Poeta chileno, https://macalderblog.wordpress.com

 

Ítalo Calvino, Por Que Ler Os Clássicos, nos lembra que “o dia de hoje pode ser banal e mortificante” e que a leitura dos clássicos nos rende um olhar para trás e para frente. “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”. Machado de Assis é um clássico. 

No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado começa com uma dedicatória  “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver…”. O narrador é um morto: “(…) eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor (…)”. Com esta artimanha vai destrinchando a sociedade brasileira do século XIX, hipócrita, escravagista, patriarcal. Inovador na forma e crítico com muita ironia e graça. Dom Casmurro, o narrador é que é posto em xeque. Narrado em primeira pessoa, Bentinho, o dom Casmurro, denuncia a traição de Capitu, sua esposa. No século XX, as feministas fazem outra leitura questionando se o narrador é confiável. Traiu ou não traiu vira uma grande polêmica. O que fica é a maestria do autor em te dar munição para uma e outra hipótese. Só temos a voz do “traído”, Bentinho é o ponto de vista; Capitu não fala. E Capitu, que grande personagem: “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Olhos de ressaca. Eu sou mais a Capitu: forte, audaciosa, sabe bem o que quer. Bentinho é fraco, ressentido. Machado transforma um tema tão antigo na literatura, o adultério (ou suposto), em obra prima.

Nos contos, Machado de Assis é fabuloso.  Missa do Galo é doce como o primeiro amor. Um jovem de dezessete anos à espera da missa da meia-noite, vê-se com uma mulher de trinta anos, dona da casa em que está hospedado. Lendo Os Três Mosqueteiros ” trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras”. Sua aventura é Conceição, “arrastando as chinelinhas” e que “tinha um ar de visão romântica”. “Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa”. Porém nada acontece, a sedução fica nas entrelinhas. A Cartomante, o narrador nos conduz por um caminho místico – começa citando Hamlet, “que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia” – e zás… dá uma rasteira no leitor. Frei Simão, é história de um frei tido como “gênio solitário”, cercado de respeito e veneração, que ao morrer, profere suas últimas palavras: “Morro odiando a humanidade”. E em Aurora Sem dia, Machado destila sua ironia cáustica em Luís Tinoco, “um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem (…) (que) possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos”. O narrador faz o que bem quer com este personagem que “acorda escritor e poeta” e “não dormiu sobre louros imaginários”. Nem a glória veio quando se mete na política: “queimou suas asas de poeta” e : “Estou disposto a acudir à voz do destino (…). A politica chama-me ao seu campo”; mas “a erudição política de Luís Tinoco era nenhuma”.

Por que falo em Machado de Assis? Entre tantos argumentos, valho-me da atualidade de “dias mortificantes”. Dias em que a Secretaria de Educação de um estado brasileiro, Rondônia, teve a petulância de divulgar uma lista de 43 livros que deveriam ser recolhidos das escolas públicas do estado. Não num ato isolado, e sim fazendo coro com as premissas do governo central. Censura por serem obras inadequadas. Dentre os autores, Machado de Assis. A “caça às bruxas” não vingou, grita geral. Dias também em que o pobre e preto e trabalhador é vítima de um verdadeiro genocídio e encarceramento no país. A polícia se acha no direito de parar numa blitz, sumir, prender, ou matar pessoas negras, seguindo uma cartilha da política geral. Machado de Assis era filho de uma lavadeira e de um pintor de parede. Machado de Assis era negro.

O povo pobre e preto constrói sua história tecendo com fios invisíveis seus poemas. Machado é um exemplo.

Que o machado seja nossa ferramenta para destruir esses dias mortificantes.

Léo. 

O Alienista Alienado

“– Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (Machado de Assis, O Alienista).

 

“Um pensador húngaro chamado Georg Lukács disse no seu livro A Teoria do Romance que o romance é a história de um herói insatisfeito, que busca valores autênticos num mundo degradado (quer dizer, roto, descosido, malfeito)” (Flávio Aguiar, prefácio Murmúrios no Espelho in Contos, Machado de Assis, Editora Ática, 1976). O romance seria uma representação de como conciliar a manutenção de uma sociedade que não representa os interesses da maioria e não cumpre suas promessas de liberdade e felicidade. “Esse mundo ‘degradado’ enfrenta diariamente o problema de ter ou não sentido, de ser ou não absurdo, sem nexo” (Flávio Aguiar).

Entretanto, o herói de Machado de Assis no conto O Alienista, guarda uma peculiaridade: a ironia. Simão Bacamarte, o herói, não está imbuído de “valores autênticos” lutando contra o “mundo degradado”. O alienista busca “louros imarcescíveis”, isto é, louros que não murcham. O “degradado” também está na constituição do herói. Creio que, talvez, esta seja uma marca da escrita de Machado. Esta é a grande ironia, beirando o sarcasmo, o cinismo, o cético. Vejamos.

Dr. Simão Bacamarte é “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas” (O Alienista E Outras Histórias, Machado de Assis, Editora Saraiva, 1957). “– A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo” (p. 19). Debruçou-se sobre os estudos e um “dos recantos” lhe chamou a atenção, “o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral” (p. 20). Sendo um reino ainda quase inexplorado (o conto foi publicado em 1882), viu a chance de alcançar seus “louros”. Não poupou meios e artimanhas para construir uma casa de Orates, hospital psiquiátrico, em Itaguaí, a Casa Verde. Seus ímpetos de estudos fizeram da “Casa Verde (…) um cárcere privado, disse um médico sem clínicas” (p.45).   Primeiro recolheu os “desequilibrados”, depois os “equilibrados”, e por fim, a si mesmo. A cidade em polvorosa, viveu sua Revolução Francesa: o terror, a rebelião, e a restauração (títulos de capítulos do conto). Cada vez que Bacamarte tinha uma teoria nova, não se sabia quem seria recolhido: “Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido” (p.49).

O narrador é brilhante, implacável. Apoiando-se em “cronistas do tempo” – já que a narrativa era de “tempos remotos” – vai descrevendo a fala da personagem, o que vai na sua alma, e as fofocas dos “cronistas”. Vemos as camadas do narrado. Um bom exemplo é o herói ao escolher seu recanto de estudo: “Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de ‘louros imarcescíveis’, – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores” (pp. 20-1). A ironia do narrador não poupa sacerdócio, o chefe da rebelião que se rende ao poder, as autoridades constituídas. Nada, nem ninguém, se safa do implacável narrador. Bacamarte, o herói, numa escolha científica de sua esposa, “apta para dar-lhe filhos robustos” (p. 20), vê-se logrado, “D. Evarista mentiu às (suas) esperanças”. Assim o ilustre médico com “olhos acessos da convicção científica” (p. 91), fica sem linhagem, sem herdeiros. Que ironia!

A crítica visível do conto é ao cientificismo, ao determinismo, uma sátira à ditadura da razão, termos muito em voga no final do século XIX. Além de ser muito engraçado, este conto cabe muitas reflexões. Se a espinha dorsal da realidade é a infelicidade geral, social e organizada, como diz Flávio Aguiar, Bacamarte lida com um conceito de razão alienado, no sentido marxista. Para este médico, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades” (p.36). “– Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, (…), é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura”.  Como ter o “perfeito equilíbrio de todas as faculdades” numa sociedade organizada na infelicidade? Quem pode decidir – de fato – os limites da razão num mundo degradado?

A ciência a serviço das vaidades é uma ciência alienada. Lida com a humanidade e a natureza como mercadoria, objeto. Busca o poder e não a compreensão da realidade. Ciência coisificada.

O alienista, com este conceito de razão desprovido de conteúdo social, vendo a doença (objeto) e não o humano (sujeito), se utilizando da ciência coisificada, é alienado.

Léo

OS LIVROS QUE NÃO ESCREVI

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Gilberto Scarpa fez um curta-metragem chamado Os Filmes Que Não Fiz. Gostei da brincadeira: dos filmes que não realizou, fez um. E eu escrevo um texto sobre livros que me impactaram.

Desde garota gostava muito de ler. O que me chegava à mão. Mergulhar em outro mundo, conhecer pessoas, brincar com as palavras. Fugir de uma infância pobre num mundo cheio de tristezas. Ler era como percorrer outros caminhos. Li muitos gibis, fotonovelas de amor, livrinhos de faroeste, fotonovelas de agente secreto em plena Guerra Fria. E romances. Creio que meu primeiro amor – e que permanece até os dias de hoje – foi Machado de Assis. Sua ironia fina, seu ceticismo querendo acreditar, e suas brincadeiras com o leitor (“Caro leitor…”) o chamando para dentro da história.

Na juventude conheci os textos políticos, teóricos. Outro mundo se descortinou: o que está atrás das coisas, das palavras, a luta de classes. Não mais a fuga, e sim um mergulho na realidade. Conhecer a história para mudar o futuro, construindo o presente. Tão impactante quanto Machado me seduzindo com suas piscadelas. Só mais tarde, bem mais tarde, é que percebi que no fundo todos falam do real.

Por volta dos vinte anos, Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marques. Anos Oitenta. No meio da militância política, luta pela derrubada da ditadura, adentro um mundo mágico, realismo fantástico, nomes intermináveis que se repetem de geração em geração, cultura popular. Mundo mítico. Os Buendías me acompanham até hoje. Como esquecer Amaranta tecendo sua mortalha como Penélope de Ulisses? O homem perseguido pelas borboletas amarelas? Aquela que – estendendo lenções – sobe aos céus? A força de Úrsula? A solidão percorrendo cem anos? Anos depois fiquei sabendo que bebês que choram no ventre são adivinhos mesmo. Quase conheci um deles.

Na maturidade conheci Grande Sertão: Veredas. Não consigo me lembrar o que me motivou a encomendar o livro. Mas sinto até hoje como o peguei nas mãos. Era uma edição muito bonita. Um livro pesado. Aqueles dois pontos no título. Quando mergulhei nas palavras de Riobaldo, quando conheci Diadorim, senti-me arrebatada. Como se pode brincar assim com as palavras? Reconstruí-las? Manter um ritmo em seus sons? Cada palavra é um poema. Não conseguia ler muitas páginas num dia. Era intenso demais.

Devo confessar, “que muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento…”, percebi que tinha muito de Madame Bovary. Preferia os livros à vida. Demorei muito para entender que “a realidade é mais rica que qualquer teoria”. E que me limitei no papel de leitora. Pensava: já escreveram tanta boniteza, por que me arriscar nas palavras? 

Caro leitor, é que sinto um turbilhão dentro de mim. Um vulcão sempre em erupção. A beleza das palavras e suas traições, o mundo construído pelos autores só me faz pensar e refletir sobre o nosso. Agora consigo construir pontes. “Atar as duas pontas da vida”.  E a escrita é minha ferramenta.

 Não, não escrevi livros. Mas gosto tanto de escrever sobre eles.  

Léo