“Agora, tenho nome nenhum, não careço. Nhô Nhuão Guede me chamava de Tonho Tigreiro. Nhô Nhuão Guede me trouxe pr’aqui, eu nhum, sozim. Não devia! Agora tenho nome mais não. (…) eh, sou onça!” Guimarães Rosa.
Guimarães Rosa levou mais de vinte anos para escrever o conto Meu Tio O Iauaretê (Estas estórias, RJ, Nova Fronteira, 1985), segundo um professor que tive. Conto que é bom de ser lido com calma. Pausado. Sentir o ritmo. Ritmo da caça. Dá prazer. O próprio som da palavra é seu significado. Significante. Ler de madrugada, melhor ainda. No quieto. “Hum? Eh-eh… É. Nhor sim. Ã-hã, quer entrar, pode entrar… Hum, hum. Mecê sabia que eu moro aqui? Como é que sabia?” (p. 160). Assim é o início do conto. Assim entramos em outro mundo.
O pronome possessivo “meu” no título aproxima o leitor e o transforma em sobrinho. A narrativa se dá ao mesmo tempo da ação, presentifica, o leitor é transportado para “dentro”. O narrador é como um felino brincando com sua presa. O movimento do texto é o mesmo da caça. Tonho Tigreiro é o narrador. É o que fala. Mecê é o interlocutor, sem voz, sabemos dele por Tonho. Como Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, também de Rosa. O narrador foi contratado por Nhô Nhuão Guede para acabar com as onças, que acabavam com o gado, numa espécie de missão civilizatória. Ele está na linha tênue entre civilização e barbárie, o humano e o animal. O “onceiro” se afasta do urbano, dos homens. “Só eu é que sabia caçar onça. Por isso Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo” (p. 163). “Sozinho, o tempo todo (…). Tenho pai nem mãe. Só matava onça” (p. 187).
Acontece que o caçador “vê” a caça, se enamora dela: “Sabia o que a onça tava pensando (…). Eh, então mecê aprende: onça pensa só uma coisa — é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido (…)” (p. 187-8). O onceiro mata mais não, “agora elas todas têm nome. Que eu botei? Axi! Que eu botei, só não, eu sei que era mesmo o nome delas” (p. 177). Onça. agora, “é meu parente” (p. 162). “Eu sou onça… Eu – onça!” (p. 171).
O caçador não é mais necessário. O interlocutor, Mecê, tem a missão de exterminá-lo. O caçador vira caça. Mecê tem tudo: revólver, relógio, dinheiro, cachaça, cavalo, e a missão de exterminar quem está fora da pirâmide social, o que não se enquadra, o bárbaro. Nhô Nhuão Guede, que o deixou sozinho, abandonado, o usou e agora quer descartá-lo. O narrador só tem a voz.
E que voz! Inquietante. Descreve todo o movimento das onças na caçada: “Vão caçar caladas” (p. 172). E Maria-Maria é o seu amor. “Elas sabem que eu sou do povo delas. Primeira que eu vi e não matei, foi Maria-Maria. (…). De madrugada, eu tava dormindo. Ela veio. Ela me acordou (…). Vi aqueles olhos bonitos, olho amarelo, com as pintinhas pretas bubuiando bom, adonde aquela luz…” (p 173-4). E que boniteza esse amor. “Eh, eh, eu fiquei sabendo…Onça que era onça – que ela gostava de mim, fiquei sabendo… Abri os olhos, encarei”. “Ói: onça Maria-Maria eu vou trazer pra cá, deixo macho nenhum com ela não. Se eu chamar, ela vem” (p. 179).
Tantas questões cabem neste conto… Quem é o bárbaro? Quem é o civilizado? É civilizado o extermínio da onça? É barbárie aprender a beleza da onça? Ah, Civilização, “desvira esse revólver!” (p. 198).
Léo