A megera domada

“Eu pergunto, senhor, é seu intuito transformar-me em brinquedo desses pretendentes?” Catarina.

Este bardo! Tão bom em desvendar a alma e seus dilemas, os porões do poder. Mas manteve o olhar viciado para com as mulheres. O mesmo olhar de 1594, quando Shakespeare publica A megera domada, (Editora L&PM, Porto Alegre, 2007).

A tradução é de Millôr Fernandes, que numa entrevista de 1962, reflete sobre esta arte. Considera a tradução a mais difícil das empreitadas intelectuais, um trabalho exaustivo, anônimo e mal remunerado. “É mais difícil mesmo do que criar originais, embora, claro, não tão importante” (p. 6). É preciso ser suficientemente amadurecido cultural e profissionalmente para traduzir, “entre o ir e o vir da tradução perde-se o humor, a graça, o talento (…), o estilo do autor”. As traduções teriam tanto a ver com o original quanto uma filha tem a ver com o pai. “Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe capturar o espírito. Não se pode traduzir sem dignidade, sentencia. Boa reflexão.

Esta peça de Shakespeare é cheia de embuste. O prólogo se inicia com Sly, um bêbado, torna-se alvo de uma brincadeira por um Lorde. “Que acham de o colocarmos numa cama, cobrindo-o com lençóis preciosos, pondo-lhe anéis nos dedos e, junto à cama, o mais delicioso dos banquetes com criados atentos ao seu despertar? O mendigo não esqueceria logo sua condição?” (p. 11). E o embuste se concretiza, incluindo um servo que se veste de mulher, e se transforma em esposa do enganado. A trama principal, Catarina e Petrúquio, é encenada por comediantes para Sly acreditando na brincadeira de ser Lorde. No entanto, ao final da peça, Shakespeare não se volta para esta plateia. Fiquei imaginando se Sly ainda permanece no delírio.

Esta troca de papeis é uma constante. Batista é pai de Catarina e Bianca. Catarina, filha mais velha, por ter uma personalidade forte, debochada, e ser mimada, não há pretendente que a queira: “Não haverá pretendentes enquanto não se torne mais suave e gentil” (p. 24), diz Hortêncio, um dos pretendentes de Bianca. Porém Batista é firme em seu propósito: “não ceder minha filha mais jovem enquanto a mais velha não tiver marido”. Na busca do amor de Bianca, os pretendentes invertem suas posições: servo vira senhor, senhor vira servo, professor vira pai, pois ” (…) ninguém poderá distinguir em nossos rostos quem é servo ou senhor” (p. 30). Os trocadilhos com as palavras também é uma marca: “Sentinela e senta nela!” (p. 9); “Ah, você chama isso de bordões? Pois vou esbordoá-lo” (p. 51).

Entre troca de papeis, inversões, trocadilhos, ri-se muito. Grúmio, servo de Petrúquio, é fabuloso: “Danem-se, danem-se todos os cavalos fatigados, todos os patrões malucos, todos os caminhos lamacentos!” (p. 80).

Mas ecoa no riso um tom de tragédia. Não no texto. Em mim. Catarina é apresentada como megera: “(…) existe alguém tão louco que pretenda casar com o próprio inferno” (p. 27); “tuas qualidades são tão grandes que ninguém te quer” (p. 26); “seu único defeito – e é defeito demais – é ser brusca, teimosa e violenta” (p. 36). A irmã, Bianca: “Querida irmã, não me tortures fazendo-me de criada e de escrava. Isso me humilha” (p. 45). O pai acaba com ela. Pois bem, ela parece ser insuportável. Por que? Não se sabe. Parece uma garota rica e mimada. Também é espirituosa, irônica, inteligente. A longa cena do primeiro encontro entre Petrúquio e ela é uma prova. São parecidos, estão no mesmo patamar, se retrucam. Um desafio para os dois. “Os burros foram feitos para a carga. Como você”, diz ela. “Para carregar-nos, muito antes de nascer, foram feitas as mulheres”, responde ele. “Mas não a animais, quer me parecer” , retruca Catarina (p. 53).

A questão é que é ela a domada. Petrúquio se arma de embustes; finge-se de gentil e a deixa sem comida e sem dormir, a tal ponto que ela se curva. Mas por que ela se casa? Ele, por fortuna: “Antônio, meu pai, acaba de morrer. Atirei-me, então, em meio ao caos, decidido a casar do melhor modo e prosperar o mais possível. Tenho dinheiro na bolsa e bens na pátria. (…). Vim arranjar em Pádua um casamento rico (…), como a riqueza deve ser a chave de ouro do meu soneto matrimonial….” (p. 35). Ela: “A vergonha é toda minha: obrigada a conceder a mão, contra a vontade, a um maluco estúpido e cheio de capricho (…)” (p. 69).

Catarina não foi domada em sua personalidade tacanha. Foi transformada em submissa, esposa submissa. A peça termina com um longo discurso de Catarina sobre como as esposas devem se comportar: “O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. (…). E não exige de ti outro tributo senão amor, beleza, sincera obediência” (p. 127). E por aí vai. Petrúquio dá a palavra final; “Sim, eis uma mulher”. Até parece outro embuste. Como se Catarina olhasse para a plateia e desse uma piscadela. Mas isso é desejo meu. Não do texto.

Pensei: esta Comédia nos faz rir, porém a ordem não é alterada. Os casamentos, apesar de todos os truques, se mantém dentro dos conformes. Catarina e Bianca se casam com pretendentes ricos. Talvez a ordem só seja abalada na Tragédia, como Romeu e Julieta, por exemplo. São concepções do que seja uma Comédia e Tragédia. Talvez.

O que mais me intrigou é que o discurso de Catarina, compreensível em 1594, ainda ecoe em, praticamente, cinco séculos depois. Como boa parte da nossa sociedade ainda tem como modelo de esposa e casamento as palavras de Catarina. Paradoxalmente, suas palavras, graças a intensa luta de nós, mulheres, seja um embuste.

Léo

Rei Lear

“Lear: Quem é que pode aqui me dizer quem sou?

Bobo: A sombra de Lear”

Italo Calvino diz que um clássico sempre se revela novo, inesperado; que estamos constantemente relendo. “O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás” (Por Que Ler Os Clássicos, Companhia das Letras, S.P., 1993, p. 14).

Rei Lear, William Shakespeare (Editora Penguim Classics Companhia das Letras, S.P., 2020), tem drama conhecido: um rei, alegando cansaço e velhice, anuncia a divisão de seu reino entre suas três filhas e aos genros. Para tanto pede provas de amor filial como condição. Goneril e Regan fazem as declarações mais brilhantes e falsas, ganhando assim o reino. Cordélia não participa do jogo. Despossuído, Lear é subjugado por Goneril e Regan. Somente no final da vida reconhece que Cordélia é a única que o amou.

Talvez a questão central desta peça de teatro seja o poder. Sem seus símbolos de rei, é tratado como um homem comum: miséria, fome, quase sem trajes. Despossuído. Nu. Lear como sombra. Sofre todas as intempéries da cobiça das filhas, que só querem reinar. Como se fosse as duas faces da moeda: era rei, tornou-se um homem do povo. Viveu as duas fatias de uma sociedade. E enlouquece.

Num trabalho brilhante de Lawrence Flores Pereira e Kathrin Holzermayr Rosenfield, na Introdução, o texto se descortina em muitos e muitos tecidos. “A divisão do reino que dá início à peça é uma alusão velada a um momento político de transformação da Inglaterra” (p. 10). O período de 1604 e 1607 marcou as tentativas do rei da Escócia e da Inglaterra de convencer o Parlamento na união destes reinos. Assim a decisão de Lear de “fatiar o reino seria uma anomalia inquietante”, alertam os introdutores. Uma aventura que tem valor de “contraexemplo”: o que não se deve fazer. Outro aspecto é o entrelaçamento do poder e do paternal, pois Lear, ao dividir seu reino com suas duas filhas, de pai torna-se filho, invertendo os papéis. E faz a divisão do reino se calcando em algo que “não parece ter a sabedoria do bom monarca” (p. 17): teste de amor. O rei se deixa ludibriar pelas palavras fáceis, “as hipérboles vazias e ocas”, que Goneril e Regan se utilizam para ganhar o prêmio. “Ao senhor amo mais que um verbo há de moldar” (p. 101), afirma Goneril. Regan alega amor maior. Cordélia, a filha predileta, leva o teste de amor a um impasse; uma “quebra do protocolo” pela filha mais nova: “se recusa a atender ao ritual” (p. 15). Pergunta Lear: “o que vais dizer pra ter um terço mais opulento que tuas irmãs?”. Responde Cordélia: “Nada, meu senhor”. “Apenas Lear é incapaz de ver o amor, a retidão e a pureza de Cordélia” (p. 17).

E há mais e mais e mais riquezas neste texto. A história entrelaçada de Gloucester e seus dois filhos: Edgar, filho legítimo, e Edmundo, ilegítimo. As artimanhas de Edmundo para conquistar a herança. E que vilão maravilhoso ele é: “Agora, deuses meus, abasteçam os bastardos!” (p. 110). Edgar se transveste de Pobre Tom para fugir das intrigas e se salvar. Finge-se de pobre e louco, e assim é o mais lúcido. Gloucester, um dos poucos aliados de Lear, fica cego por isso. Torna-se o que tem mais visão. O Bobo é uma personagem encantadora: engraçado, lúcido, vê a verdadeira armadilha que o próprio Lear se prepara. Tem falas esplêndidas. Os disfarces, os embustes, tudo nos faz pensar.

Não é só o texto em si que nos ensina. Lawrence e Kathrin chama a atenção da grandiosidade de Shakespeare. Este autor bebeu em vários outros textos e lendas e contos, transformando tudo em Rei Lear. Lawrence, que é o tradutor desta peça, fala da “opulência linguística” do drama, na “sintaxe complexa e inusitada”, no contraste da “alternância entre o sério e o cômico, o poético e o coloquial, entre prosa e verso” (p. 77). “Lear ele próprio fala várias línguas: a linguagem majestática do rei em presença da corte, a linguagem da revolta e do ressentimento, a linguagem da comoção extrema e da reconciliação. Quando é solene, fala em verso; na loucura, sua fala modulará verso e prosa” (pp. 82-3). Shakespeare mistura termos cultos e raros, linguagem popular, incorpora termos bizarros, regionais ou locais. Que até para xingar é educadíssimo: “letra sem serventia” (p. 141). Brinca com as palavras, que deixa de ser simples conceitos e se transformam em algo vivo, pulsante. “Rei Lear possui também uma variedade de versos populares, baladas, canções chulas e cançonetas cômicas (…) que são um desafio à tradução” (p. 86). Desafio muito bem encarado.

Enfim, um grande. Um clássico. Comparável ao Akira Kurosawa que o encena em Ran, filme de 1985.

“é, nós somos para os deuses/ como moscas nas mãos de garotos arteiros. Nos esmagam por diversão” (p. 186).

Léo

DOS PALCOS DO MUNDO: CYRANO DE BERGERAC, POETA!

“O mundo, para mim, é o mundo, apenas, Graciano: um palco em que representamos, todos nós, um papel, sendo o meu triste” (O Mercador de Veneza, Shakespeare).

 

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Capa do livro

 

Cyrano de Bergerac esgrima com a espada e com versos. É uma peça de teatro escrita por Edmond Rostand (Editora Abril Cultural, 1983), apresentada como uma “comédia heroica em cinco atos”. Os quatro primeiros atos se passam em 1640 e o quinto, em 1655. Foi escrita no final do século XIX e sua primeira apresentação ocorreu em 1897.

A história é conhecida. Roxana é amada por dois homens: Cristiano, belo na aparência, e Bergerac, belo na essência. Cyrano abre mão de seu amor e “empresta” seus poemas a Cristiano por quem Roxana está apaixonada. Cristiano é belo, mas sem “voz”. Cyrano é belo, mas seu nariz é uma “hipérbole”.

Cyrano de Bergerac é poeta, galhofo, gentil, exímio com a espada, defensor dos fracos e oprimidos. Não se rende:

                                    “Já vos disse uma vez, e duas! Vá terceira:

                                      Não! Não tenho patrão…”.

O texto é veloz, em ritmo de uma luta de espadas.  Sofisticado e simples ao mesmo tempo. Engraçado, lírico, poético. Muitas referências à mitologia grega. Esta edição é rica em notas onde descubro que Diógenes é um filósofo grego que viveu no século V a. C. Levava uma vida de máxima simplicidade, percorrendo as cidades descalço, dormindo ao relento ou usando um tonel como abrigo (não lembra Chaves?). Proclamava o desprezo pela humanidade e, certa vez, foi visto com uma lanterna acesa na mão, em pleno dia, afirmando estar à procura de um homem. Se ele conhecesse Bergerac…

Tem Ragueneau, o pasteleiro que é pago em versos escritos no papel. Sua mulher, Lise, mais pragmática, os usa como embrulhos dos pastéis de nata. O feijão e o sonho:

                                    “Lise: E não devo tirar ao menos um provento

                                               Do que me deixam cá por triste pagamento

                                               Os escritores maus de linhas desiguais?

                                      Ragueneau: Formiga, que ofendeis cigarras divinais!”.

Tem receitas de “tortazinhas de amêndoas” em versos. Tem cartas de amor:

                                    “Essa carta de amor que eu faço a vida inteira,

                                      E que refaço em mim cem vezes, de maneira

                                      Que, se puser minh’alma ao lado do papel,

                                      Basta-me só tirar-lhe a cópia bem fiel”.

Este drama de cavalaria personifica vários ideais do romantismo. Roxana é a perfeição, bela, inteligente, ardilosa, valente. Além dos protagonistas, também é amada pelo vilão, o conde De Guiche. Exige também o perfeito. Não quer somente a beleza externa de Cristiano. Como a mulher real que inspirou Rostand, quer a beleza das palavras: “(…) Quer frases bem-feitas, versos, paradoxos…”. Quem faz a apresentação do livro afirma que ela fica com “um amor duas vezes perdido”. Cyrano é um herói trágico. Vence só um batalhão de cem homens. Em plena guerra passa a linha do inimigo para entregar cartas de amor, escritas por ele e assinadas por Cristiano, cumprindo promessa à Roxana. É a força do indivíduo que se sobrepõe. O indivíduo que incorpora todos os ideais, menos o da beleza física. Cyrano é a força das palavras. De Guiche é o vilão. Mas a vilania mesmo é o do mundo real imperfeito.

                                    “De Guiche: Hoje um poeta é para nós um luxo que vai bem:

                                                          – Quereis vós ser o meu?

                                     Cyrano: Não, senhor, de ninguém”.

 

Ficção e realidade se entrelaçando

 

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Cena da primeira apresentação de Cyrano de Bergerac no Théâtre de la Porte Saint- Martin, em Paris (1897). Ilustração do livro.

Cyrano existiu e escreveu. Nasceu em Paris em 1619. Era espadachim, poeta, escritor. E tinha um nariz “tão extraordinariamente grande que lhe tomava parte considerável do rosto” (apresentação do livro). Edmond Rostand pensava em escrever uma peça sobre esta lendária figura. “Mas a ideia só se tornou clara a partir de um incidente (…). Rostand conheceu um jovem que falou de seu amor não correspondido e lhe pediu conselhos para conquistar a amada indiferente”. O jovem não usava as palavras com maestria. Rostand o ajudou. “(…) imediatamente relacionou a situação com a infeliz história sentimental de Cyrano de Bergerac (…)”.

Cyrano de Bergerac foi escrito em versos numa época em que isso não era mais recorrente. E os ideais românticos tinham sido ultrapassados, “banidos da arte pelo princípio realista”. Por isso na estreia o clima era de total pessimismo. “Pouco a pouco, a expressão tensa e sarcástica de quem chegou para vaiar e criar confusão desaparece dos olhos dos expectadores. (…). Ao fim do primeiro ato, não pairam mais dúvidas sobre o sucesso. Ao final do quinto, os aplausos explodem num estrondo que há muito tempo não se ouvia (…)”.

Cyrano estava na boca dos parisienses, “que recitavam as falas pelas ruas, pelos bares, pelos salões”. Numa apresentação, o ator exausto, “esqueceu-se de dizer quatro versos no final de uma fala. Um expectador levantou-se, indignado, e reclamou: ‘o texto, senhor, o texto! ’”. Cyrano de Bergerac saia “das páginas da história, para encarnar, aos olhos de todos, o próprio ideal do povo francês”.

Como diz uma personagem, há “nomes que hão de viver enquanto o mundo exista!”. Cyrano de Bergerac é um deles: “Meu coração é grande, é fácil de encontrar”.

Léo