Dialética

Estava eu com vinte e poucos anos em São Paulo. No ar a efervescência política. Na sede de Alicerce – organização da juventude revolucionária – deparei-me com o poema abaixo. Senti a lua como nunca a senti antes: descortinada, materialista, “coisa em si”.  Minha saída do mundo idealizado para as entranhas do marxismo. Olhar a realidade como ela é. Desmetaforizada.

Aos cinquenta e sete anos entro num sebo e, por acaso, sem estar procurando, deparo-me com Manuel Bandeira. Compro o livro. Este poema leio com outros olhos. Entendo o jogo poético. A dialética. A lua, satélite. A lua “de atribuições românticas”. Pois, nós humanos, temos a capacidade da poesia: olhar a realidade “em si” e transformar satélite em “astro dos loucos e dos enamorados”. E me sinto bem. Torcendo para que este satélite transporte luz para nossos dias.

Eis o poema:

Satélite

Manuel Bandeira

 

 

Fim de tarde.

No céu plúmbleo

A Lua baça

Paira

Muito cosmograficamente

Satélite.

 

Desmetaforizada,

Desmitificada,

Despojada do velho segredo de melancolia,

Não é agora o golfão de cismas,

O astro dos loucos e dos enamorados,

Mas tão-somente

Satélite.

 

Ah Lua deste fim de tarde,

Demissionária de atribuições românticas,

Sem show para as disponibilidades sentimentais!

 

Fatigado de mais-valia,

Gosto de ti assim:

Coisa em si,

– Satélite.

lua
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