Rei Lear

“Lear: Quem é que pode aqui me dizer quem sou?

Bobo: A sombra de Lear”

Italo Calvino diz que um clássico sempre se revela novo, inesperado; que estamos constantemente relendo. “O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás” (Por Que Ler Os Clássicos, Companhia das Letras, S.P., 1993, p. 14).

Rei Lear, William Shakespeare (Editora Penguim Classics Companhia das Letras, S.P., 2020), tem drama conhecido: um rei, alegando cansaço e velhice, anuncia a divisão de seu reino entre suas três filhas e aos genros. Para tanto pede provas de amor filial como condição. Goneril e Regan fazem as declarações mais brilhantes e falsas, ganhando assim o reino. Cordélia não participa do jogo. Despossuído, Lear é subjugado por Goneril e Regan. Somente no final da vida reconhece que Cordélia é a única que o amou.

Talvez a questão central desta peça de teatro seja o poder. Sem seus símbolos de rei, é tratado como um homem comum: miséria, fome, quase sem trajes. Despossuído. Nu. Lear como sombra. Sofre todas as intempéries da cobiça das filhas, que só querem reinar. Como se fosse as duas faces da moeda: era rei, tornou-se um homem do povo. Viveu as duas fatias de uma sociedade. E enlouquece.

Num trabalho brilhante de Lawrence Flores Pereira e Kathrin Holzermayr Rosenfield, na Introdução, o texto se descortina em muitos e muitos tecidos. “A divisão do reino que dá início à peça é uma alusão velada a um momento político de transformação da Inglaterra” (p. 10). O período de 1604 e 1607 marcou as tentativas do rei da Escócia e da Inglaterra de convencer o Parlamento na união destes reinos. Assim a decisão de Lear de “fatiar o reino seria uma anomalia inquietante”, alertam os introdutores. Uma aventura que tem valor de “contraexemplo”: o que não se deve fazer. Outro aspecto é o entrelaçamento do poder e do paternal, pois Lear, ao dividir seu reino com suas duas filhas, de pai torna-se filho, invertendo os papéis. E faz a divisão do reino se calcando em algo que “não parece ter a sabedoria do bom monarca” (p. 17): teste de amor. O rei se deixa ludibriar pelas palavras fáceis, “as hipérboles vazias e ocas”, que Goneril e Regan se utilizam para ganhar o prêmio. “Ao senhor amo mais que um verbo há de moldar” (p. 101), afirma Goneril. Regan alega amor maior. Cordélia, a filha predileta, leva o teste de amor a um impasse; uma “quebra do protocolo” pela filha mais nova: “se recusa a atender ao ritual” (p. 15). Pergunta Lear: “o que vais dizer pra ter um terço mais opulento que tuas irmãs?”. Responde Cordélia: “Nada, meu senhor”. “Apenas Lear é incapaz de ver o amor, a retidão e a pureza de Cordélia” (p. 17).

E há mais e mais e mais riquezas neste texto. A história entrelaçada de Gloucester e seus dois filhos: Edgar, filho legítimo, e Edmundo, ilegítimo. As artimanhas de Edmundo para conquistar a herança. E que vilão maravilhoso ele é: “Agora, deuses meus, abasteçam os bastardos!” (p. 110). Edgar se transveste de Pobre Tom para fugir das intrigas e se salvar. Finge-se de pobre e louco, e assim é o mais lúcido. Gloucester, um dos poucos aliados de Lear, fica cego por isso. Torna-se o que tem mais visão. O Bobo é uma personagem encantadora: engraçado, lúcido, vê a verdadeira armadilha que o próprio Lear se prepara. Tem falas esplêndidas. Os disfarces, os embustes, tudo nos faz pensar.

Não é só o texto em si que nos ensina. Lawrence e Kathrin chama a atenção da grandiosidade de Shakespeare. Este autor bebeu em vários outros textos e lendas e contos, transformando tudo em Rei Lear. Lawrence, que é o tradutor desta peça, fala da “opulência linguística” do drama, na “sintaxe complexa e inusitada”, no contraste da “alternância entre o sério e o cômico, o poético e o coloquial, entre prosa e verso” (p. 77). “Lear ele próprio fala várias línguas: a linguagem majestática do rei em presença da corte, a linguagem da revolta e do ressentimento, a linguagem da comoção extrema e da reconciliação. Quando é solene, fala em verso; na loucura, sua fala modulará verso e prosa” (pp. 82-3). Shakespeare mistura termos cultos e raros, linguagem popular, incorpora termos bizarros, regionais ou locais. Que até para xingar é educadíssimo: “letra sem serventia” (p. 141). Brinca com as palavras, que deixa de ser simples conceitos e se transformam em algo vivo, pulsante. “Rei Lear possui também uma variedade de versos populares, baladas, canções chulas e cançonetas cômicas (…) que são um desafio à tradução” (p. 86). Desafio muito bem encarado.

Enfim, um grande. Um clássico. Comparável ao Akira Kurosawa que o encena em Ran, filme de 1985.

“é, nós somos para os deuses/ como moscas nas mãos de garotos arteiros. Nos esmagam por diversão” (p. 186).

Léo

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