“Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas…”
Sinal Fechado, trecho, Paulinho da Viola.
Quando eu tinha uns quatorze anos conheci Roberto. Moreno cor de jambo, olhos de jabuticaba, “olhar noturno” (Alceu Valença), mãos bonitas, homem bonito, e uma boca que, hoje, beijaria. Ele, operário de uma fábrica de tratores, eu trabalhava de ajudante em perua escolar. Ele mais velho que eu, namorado de uma amiga minha. Meu amigo.
Meu pai era muito bravo, mas Roberto conquistou todos de casa. Conversávamos no portão, por horas a fio. Sobre o quê? O que uma garota de quatorze anos tem tanto pra falar? Não me lembro. Só sei que conversávamos muito. Sobre a vida. Com certeza sobre a vida.
Em 1977 fui cursar o colegial, hoje ensino médio. Roberto também voltou aos estudos. Assim todas as noites a gente se encontrava e conversava e estudava. Usávamos guarda-pó branco como uniforme numa escola pública. Tempos de ditadura militar. A professora de Física jurava que a gente se gostava. Ríamos. Só sei que, certa noite, Roberto me levou uma flor que tinha escondido no guarda-pó branco.
Eu era amiga também da irmã de Roberto. Ela tinha olhos de dor. Fui até sua madrinha de casamento. A última vez que a vi foi num show da Gal Costa. Cantamos juntas bem alto “Meu nome é Gal…”.
Eu e Roberto nos afastamos. Eu queria participar de política, fazer movimento estudantil. Mudei de emprego, fui trabalhar como recepcionista numa clínica dentária de frente à Biblioteca Municipal. E passei a estudar de manhã. Comecei a participar de reuniões da União dos Estudantes Secundaristas, do Comitê pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita. Construímos uma turma na escola e fizemos um jornal, tiragem única, e amplamente distribuído. Tenho ele até hoje. Poemas, assuntos gerais, e eu escrevi sobre o congresso de reconstrução da UNE, união nacional dos estudantes. Tentei realizar a eleição da UNE dentro do colégio. Claro que o diretor vetou: a UNE era ilegal. Então a fizemos na rua, nas calçadas da escola.
Depois fui para faculdade; me mudei para São Paulo… Mas esta é outra história. Eu e Roberto nos perdemos “na poeira das ruas”.
“Muitos anos depois diante do pelotão de fuzilamento…”. Brincadeira. Este é o início de Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marques. Muitos anos depois nos reencontramos. Rápido. Roberto era casado, tinha filho pequeno e morava em outra cidade.
Não deu tempo de dizer para ele o quanto foi importante para mim. Não tive tempo de explicar que as tantas horas de conversa me marcaram profundamente. Sem tempo de mostrar que ele está comigo até hoje.
Quem sabe me lê.
Léo
💚
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Beijo pra ti.
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Lembro-me bem dele. Falante, e sempre em voz alta, como se a alegria estivesse com ele. Contagiava mesmo. Engraçado é que, geralmente, quem fala muito escuta de menos, o que parece não ser o caso. Que bom é ter amigos, mesmo que muitas vezes, em lembranças.
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Estão sempre com a gente. Beijão.
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Que linda e sensível história, Léo!
Lá vem as perguntas…. rsrs
Não lembro o q é guarda pó.
O que é feito da UNE atualmente?
Abraço.
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Obrigada, Miau. Guarda pó, como os que os médicos usam. A Une estava nos braços do PT, hoje nem sei, acredito que continue. Mas os estudantes de luta tem sua organização, Rebeldia.
Abraço.
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Vou ter que salientar algo que escreveu: “Não deu tempo de dizer para ele o quanto foi importante para mim. Não tive tempo de explicar que as tantas horas de conversa me marcaram profundamente. Sem tempo de mostrar que ele está comigo até hoje.”
Quantas pessoas nos marcam na nossa vida e devido ao “tempo” não temos a possibilidade de lhes dar a verdadeira e devida atenção. Essas, fazem parte de nós, constroem-nos e fortalecem-nos – esse tempo, esse tempo está dentro de nós.
Novamente um belíssimo escrito, Leo.
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Em tempo: teus comentários me constrói, me fortalece, e está dentro de mim. Muito obrigada.
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Nossa Mana, que lindo isso!!!
Lembro vagamente dele…
Não foi ele que uma noite fez uma serenata pra vc???
Eu era pequena, talvez por isso a vaga lembrança. Mas lembro de algo lá no fundo…
Ele era alto (ou eu por pequena o via assim…) magro, moreno de cabelos pretos, liso até os ombros…(será que era assim?) . Como vc escreve bem… Não só por isso, mas tenho tanto orgulho de ti…
Te amo! Simples assim…❤❤🌹🌹
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Serenata pra mim….Que boa lembrança. Este que você está lembrando acho que é o Felipe
Irmã linda. Muito obrigada pelas tuas palavras. Estão no meu coração.
Te amo.
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Que relato lindo, e cheio de afeto. Bom dia. 💖💫
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Obrigada. Bom dia, querida.
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texto sensível, sim. mas me pegou mesmo o humor um tiquinho negro que despontou com a inscrição do início do Cem anos de solidão. hahahahaha. obrigada!
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Eu que agradeço. Também dei risada. É divertido escrever.
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Incrível como podemos ter saudades do que não foi vivido.
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Não sei se se refere ao fato de não ter dito a importância que ele teve pra mim. Se for este o caso, creio que só o tempo dá a dimensão de algo tão bonito. Bom, não sei se te compreendi. Porém, agradeço.
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Você me inspira com suas crônicas. Leio-as atentamente, e, imagino as minhas escritas. Algumas terão que esperar um pouco mais, ficam em minha memória, por enquanto. Se tu não descrevesses as compleições físicas do Roberto, eu diria que terias conhecido meu tio Roberto que mora aí em Londrina. Mas, não é não tanto pelas características físicas quanto civis. rsrsrsrsrs
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É muito bom saber que minha escrita inspira outras pessoas. Abraços inspiradores pra ti.
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💙🌹🌷💙
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