O Estrangeiro

“Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir tanto às prisões, como aos sonos inocentes” Albert Camus, O Estrangeiro.

Há algo neste romance que me escapa. Talvez por ser tão bonito e por ser tão bem escrito. Talvez pelo protagonista ser encantadoramente absurdo. Absurdo e natural. Como a vida. Pois, há algo mais natural e absurdo do que nascer para morrer?

Dividido em duas partes, o romance se desenha em volta de Meursault, o protagonista (O Estrangeiro, Albert Camus, tradução de Antônio Quadros, Abril Cultural, SP, 1982). Escrito em primeira pessoa, só temos seu ponto de vista. O restante fica por nossa conta. Inicia-se com a morte de sua mãe que estava em um asilo. Meursault, vai se mostrando inadequado socialmente, e por isso, sempre envolto com a palavra culpa. Não por ele mesmo e sim por não saber o que se espera dele: “O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. (…). Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: – A culpa não é minha. – Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras” (p. 155). No velório da mãe, só comparece por uma convenção social. A morte é um fato e fim. Não chora. E isso é importante para a segunda parte do livro.

Conhecemos ainda Maria Cardona, “uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara em tempos. Ela também, julgo eu” (p. 175). Seu vizinho, o velho Salamano e seu cão: “Há oito anos que não se largam. (…). Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se” (p. 184). E seu segundo vizinho de andar: “No bairro, corre o boato que vive à custa de mulheres. (…). Em geral, não gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo (…). Acho que diz coisas muito interessantes. Aliás, não tenho nenhum motivo para não lhe falar! Chama-se Raimundo Sintès” (p. 185).

Entre estes, Meursaut vai se esboçando. Tem uma profunda compreensão de todos os pontos de vista e nada o atinge. Gosta de estar com Maria, mas perguntado se a ama… “Desejei-a intensamente (…) perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não” (pp. 193-5). ” (…) e era bom sentir aquela noite de verão escorregar ao longo dos nossos corpos morenos. (…). Maria (…) perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia (…). Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: – Não” (pp. 194-203).

Raimundo, seu vizinho, explicando que queria castigar uma mulher através de um plano, ele responde: “não julgara absolutamente nada (…). A mim, tanto se me dava” (p. 197). Ser amigo de Raimundo ou não tanto fazia, mas como ele insiste, ele escolhe a alternativa que dê menos trabalho: “Está bem” (p. 191). E quando Raimundo espanca a mulher, ele permanece completamente indiferente.

Para Meursault “nunca se muda de vida” (p. 202). Nada é importante, pois nada tem sentido. Então, tanto faz. A primeira parte termina com, praticamente, seu único ato: mata um árabe na praia. Mata, quase por autodefesa. Porém perguntado responde que matou “por causa do sol” (p. 275).

A segunda parte do romance explicita o absurdo social. Crime confesso, um caso simples portanto. Mas Meursault é punido por sua postura diante da vida. Se ele é absurdo, a sociedade se mostra mais absurda ainda. O juiz conversando com ele, empunha um crucifixo de prata agitando-o no ar. De um modo apaixonado, exige do réu o arrependimento e a crença em Deus. É burlesco. “Para dizer a verdade, eu mal seguira o raciocínio dele, primeiro porque tinha calor e porque voavam no escritório grandes moscas que me vinham pousar na cara, e, em seguida, porque me assustava um bocadinho. Reconhecia ao mesmo tempo que esta sensação era ridícula, pois afinal o criminoso era eu” (p. 234).

A imprensa: “Sabe, tivemos que ‘fazer’ um pouco o seu caso. O verão é uma época morta para os jornais” (p. 253).

O julgamento é um grande teatro circense. “Os debates iniciaram-se num dia de sol” (p. 250). A sala abarrotada de gente, e ele interessado em observar um julgamento mesmo que seja o seu. “Geralmente, as pessoas não se interessavam pela minha pessoa. Tive que realizar um esforço para compreender que a causa de toda esta agitação era eu” (p. 252). O promotor se debruça em questões “aparentemente estranhas ao meu caso” e tece sobre sua alma (?). Termina formulando que, ao não chorar no velório da mãe, já escondia um coração de criminoso (?). “Eis aqui a imagem deste processo: tudo é verdade e nada é verdade” (p. 261).

Meursault sente que o julgamento se passa “à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. (…). E tenho coisas a dizer! Mas, pensando bem, não tinha nada a dizer”. (pp. 269-270). Se ele se sentia estrangeiro na vida corriqueira do dia a dia, no julgamento se concretiza. “O presidente disse-me de um modo estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês” (p. 280).

Escrito nos anos de 1940, em meio da segunda guerra mundial, governos totalitários, a França ocupada, Camus nos traça a linha tênue entre o natural e o absurdo. O absurdo da realidade em detrimento de nossos anseios. O natural da vida que pulsa encalacrado num absurdo instalado. Porque – em tempos cruéis como esse nosso – consegue-se perceber que a barbárie pulsa como farsa diante do belo que é a natureza e este planeta azul solto num universo vasto. Compreender? Ainda não temos resposta. Mas é bonita a vida mesmo que seja só para ler este romance. Com descrições fabulosas sobre o tédio de um domingo: “Depois do almoço aborreci-me um pouco e vagueei pelo apartamento. (…). Vivo apenas nesta divisão, rodeado pelas cadeiras de palha um pouco gastas, pelo armário cujo espelho está amarelecido, pela cômoda e pela cama encerada” (p. 177). E também pela bela descrição do domingo visto pela sua varanda. As famílias passeando, suas roupas, as pessoas que voltam do cinema caminhando de acordo com o filme que assistiram: “Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de havia pouco tinham gestos mais decididos do que de costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras” (p. 179). Passagens muito sensíveis: “Mas no quarto do velho Salamano o cão gemeu surdamente. No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio” (p. 192).

Ou o auge do romance onde o protagonista tem uma explosão diante do capelão que insiste em falar com ele. “Então, não sei por quê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer” (p. 295).

Albert Camus, em outra obra, arremata a questão do absurdo: “Acho que o mundo não tem sentido final, mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido”.

P.S. Talvez o que tenha me escapado do romance seja isto: o protagonista foi gerado por esta sociedade absurda, teatral. E ele, ao explicitá-la, é renegado e condenado à morte. É farsa, porém não se pode denunciar. Talvez seja isto. Talvez.

Léo

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