Fahrenheit 451

“Você nunca lê nenhum dos livros que queima?”

Fahrenheit 451 é a temperatura na qual o papel pega fogo e é possível se queimar livros. Também é o filme de François Truffaut, 1966. E é o romance de Ray Bradbury, Editora Globo, 2012, São Paulo, tradução de Cid Knipel: Fahrenheit 451.

Publicado originalmente em 1953, fala de um futuro dispótico, ficção científica, onde os bombeiros têm sua função alterada: não apagam o fogo, queimam livros. A trama do romance se desenrola pela personagem de um bombeiro, Guy Montag, que ao incinerar tantos livros começa a se questionar por que “livros que pareciam tão estúpidos e indignos de tanta preocupação, pois não passavam de letras negras, papel amarelado e costuras desfiadas” (p. 145) poderiam exercer tanto fascínio em algumas pessoas?

O romance começa pelo conflito: Montag, voltando do trabalho encontra Clarice: “tenho dezessete anos e sou doida” (p. 25). Gosta de sentir o cheiro das coisas, andar a noite toda, ver o sol nascer. “Seu rosto era esguio e branco como leite e havia nele uma espécie de fome delicada (…)” (p. 23). É ela que o questiona sobre queimar livros que nunca leu; fala de como as pessoas se machucam entre si e que conversam sobre nada. E faz a pergunta crucial: você é feliz?

“Feliz! Mas que absurdo!” (p. 28), pensa Montag e a crise está instalada.

A sociedade de Fahrenheit 451 se julga feliz. Se o marido ou a esposa morre, não se chora, casa-se de novo. Filhos, só o necessário para a continuação da espécie, mas se tiver, ficam no internato e visitam os pais três vezes por mês. Caso sinta-se o tédio rondando, dirija em alta velocidade pela noite, mate pessoas que estejam passeando. Ou tome pílulas para dormir. Se tomar demais, errar na dose, há uma máquina para drenar todo o sangue do corpo e substituir por novo e linfas frescos (p. 33). Transforme sua sala em um salão com telas enormes nas quatro paredes com programas ininterruptos ou novelas interativas. Você pode ser até uma personagem, embora não se saiba do que se trata. Escola? “eles passam as respostas para você” (p. 50).

A felicidade aqui é a ausência de conflitos, é a máscara usada bem colada na pele. Uma sociedade que não quer ser incomodada, não quer dilemas. Beatty, o chefe dos bombeiros, é a voz defensora deste estado de coisas. Explica que o rádio, a televisão, o cinema, começaram a “possuir massa” (p. 77). E, porque tinham massa, ficaram mais simples, tudo foi nivelado por baixo. Livros abreviados, condensados, resumidos. Resumos de resumos (…) “Depois, no ar, tudo se dissolve!” (p. 78). Tudo subordinado ao final emocionante. A vida é imediata, o prazer por toda parte. “A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas (…) Por que aprender alguma coisa além de apertar botões (…)?”

Paz! Prazer! “Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os (…)” (p. 83). Não dê ao homem os dois lados de uma questão, dê um. Melhor ainda, não dê nenhum. Não os coloque em terreno movediço, não compare experiências. “Aí reside a melancolia” (p. 84). “Tudo que peço é um passatempo sólido” (p. 85). Por isso os livros são queimados. São inquietantes.

No entanto este mundo é frágil. Uma garota de dezessete anos, uma poesia, são capazes de abalar estas estruturas. Mundo entorpecido. Montag, o bombeiro, começa a perceber que “havia um homem por trás de cada um dos livros. Um homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no papel” (p. 74). E sente vontade de quebrar tudo, de matar. Não quer dirigir em alta velocidade: “Não desta vez. Quero ficar com essa coisa esquisita” (p. 88).

A resistência a este mundo são pessoas que decoram os livros. “O melhor é guardá-los na cabeça, onde ninguém virá procurá-los” (p. 185). São milhares de pessoas nas estradas, nos trilhos abandonados, “vagabundos por fora, bibliotecas por dentro”.

Minha única questão com este romance é a ausência de culpa do Estado, como se não existisse luta de classes, ideologia, manipulação. É como se as pessoas fossem as responsáveis, a tal “tirania da maioria”. O que não o desqualifica como um ótimo romance. Como não ver esse futuro em nosso presente? As telas do salão não seriam as telas dos celulares de hoje? As novelas interativas não seriam as redes sociais? Quando se queimam as árvores, os territórios indígenas, não estariam queimando seus livros? As fotografias e mais fotografias de pessoas sorrindo online não é a mesma felicidade desenhada neste romance?

O autor, Ray Bradbury, afirmou que “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente”.

E você? Caso encontrasse Clarice em seu caminho e ela lhe perguntasse: Você é feliz?…

Léo

2 comentários em “Fahrenheit 451

  1. Fantásticas percepções dos autores.
    Pode parecer pura filosofia, mas já se disse, antes do século desse livro, que o sistema coisifica as pessoas e suas relações, tanto do mundo do trabalho quanto afetivas.
    Para se quebrar essa relação, mesmo no sistema de trocas, é ter relação com pessoas, não coisas.
    Maravilha de crônica.

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