“O caráter feminino e o ideal de feminilidade segundo o qual ele é modelado são produtos da sociedade masculina. (…). Aliás, tudo que a palavra natureza designa no contexto da cegueira burguesa não passa de uma chaga da mutilação social” Theodor Adorno, Minima Moralia.
Maria Rita Kehl, psicanalista, poeta, investiga os Deslocamentos do Feminino (Editora Imago, RJ, 1998). Debruça-se no século XIX em que mulheres histéricas são ouvidas pelo Dr. Freud, inaugurando uma nova ciência, a psicanálise. O século de nascimento da psicanálise é o da “Modernidade, urbanização, industrialização, organização da vida pelos parâmetros da eficácia industrial e da moralidade burguesa, nascimento da família nuclear, separação nítida entre os espaços público e privado” (p. 38). O nascimento do sujeito, a proclamação do indivíduo.
Mas quem foi esta mulher freudiana? “De que tradição vinham se desviando essas que a psiquiatria da época chamava de histéricas?” (p. 58). A ideia em voga era de que as mulheres “seriam um conjunto de sujeitos definidos a partir de sua natureza”, natureza esta que seria necessário domar para que elas pudessem cumprir o seu destino: o lar, “único lugar digno” (p. 60) e a maternidade, sua tarefa mais valiosa.
Esta ideia insistente de que pensadores e cientistas compartilham e reafirmam neste período, “pode ser vista como reação a um início de desordem social que se esboça no século XVII e se torna alarmante no século XVIII, quando a Revolução Francesa destrói as fronteiras que no Antigo Regime separavam a esfera pública e privada” (p. 60). As mulheres, praticamente, pela primeira vez na história tomam as ruas buscando as bandeiras de liberdade, igualdade e fraternidade que a nova classe social promete. Elas são sujeitos na revolução de tais promessas, lado a lado com os homens, reconhecidas como seres humanos completos capazes de exercerem seus direitos. No século seguinte, a classe burguesa, já no poder, assustada com esta mulher combativa, apela para a sua “natureza”: a confina nas paredes do lar, a chama de rainha, e lhe dita sua única função, ter filhos. Uma classe que viu emergir sua classe antagônica nas barricadas de Paris em 1848, a classe dos trabalhadores, cobrando o que lhe foi prometido. “Para Fredric Jameson (…) a burguesia que ‘inventou’ o homem universal no século XVIII para combater a aristocracia se viu diante da necessidade de se defender do proletariado, depois de 1848, ‘relutante em reconhecê-lo como parte daquela humanidade universal'” (p. 182).
Tivemos que vencer Kant, Hegel, Rousseau, filósofos que insistiam na tal “natureza” da mulher. Eram os homens que nos definiam. “Até aqui, entendo que a feminilidade é uma construção do discurso masculino à qual se espera que as mulheres correspondam (…)” (p. 81). Assim as mulheres se alienam sob duas formas. No sentido político, “distante das disputas de poder que definiriam seus próprios destinos” (p. 82), como o divórcio, por exemplo. No sentido subjetivo: ” deixaram de participar do que Freud chamou ‘as grandes tarefas da cultura’, permanecendo socialmente invisíveis. (…) se a mulher só produz filhos, só se produz como mãe – o que indica, no mínimo, um repertório muito estreito de opções, além de produzir um impasse no plano das identificações” (p. 83).
Este livro de Maria Rita Kehl é bastante rico em pelo menos duas outras questões, todas discutindo esses deslocamentos do feminino. A psicanálise, que nem me atrevo a escrever, meu conhecimento é quase nulo ( a única coisa que percebi é que nossa cabeça é uma bagunça… risos…nervosos). E sobre o romance de Flaubert, Madame Bovary, como exemplo dessa mulher freudiana, que cabe em outro post.
A questão o que é ser mulher está junta com o que é ser homem. Quem é o sujeito? Sabe-se que o sujeito “vive sem saber o que o domina” (p. 48). A burguesia que inaugura o conceito de indivíduo não pode dar conta da tarefa. Suas bandeiras encobrem a verdadeira natureza do capitalismo: milhares, milhões, que produzem e poucos que se apropriam. Uma sociedade de classes necessita transformar a mulher em oprimida pela questão da posse, herança. Por isso, nós precisamos ter consciência de que o capitalismo nunca deixará de ser machista, racista, homofóbico. Faz parte de sua natureza dividir para governar. Nós, mulheres, temos tarefas múltiplas nesta luta: destruir o capital, educar nossos companheiros de trincheira, exigir nossas reivindicações e sobreviver a violência a que somos submetidas. E nunca, nunca, deixar que os homens digam o que é ser mulher.
A mulher, o homem, o sujeito, não é um sujeito transcendental, “é sempre ser de linguagem, isto é, de cultura, isto é, inscrito sob coordenadas de um certo período histórico, de uma certa sociedade, de uma certa disposição simbólica (…)” (p. 312). Transformar a sociedade e ser quem se quer ser!
Léo
Muito bem construído este texto. Uma síntese histórico/cultural fundamentada em narrativas que definiram e ainda definem um jeito de ser (ou seria de sobreviver?) da mulher enquanto pessoa privada de sua própria identidade feminina.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Mia Couto disse que o sonho é que deveria explicar o mundo. E o sonho é que a pessoa só seria. Sem explorar o outro, sem oprimir a outra.
Assim o sonho não só explicaria, mas transformaria o mundo. Não em paraíso e sim para se enfrentar as verdadeiras questões.
Obrigada pelas palavras e pela leitura, Estevam. Abraço forte enquanto este mundo sonhado não vem.
CurtirCurtido por 1 pessoa
É sempre um prazer ler seus textos, Léo. Este então é de uma profundidade para poucos neste mundo de ‘valores líquidos’.
Aproveito a oportunidade para dizer-lhe que no próximo dia 24/02 às 18h, será a live de lançamento de meu livro: Alteridade e Sentido Ético da Religião na Filosofia de Emmanuel Lévinas. Será pelo instagram da Editora Brazil Publishing direto aí de Curitiba. @brazilpublishing ou pelo meu: @estevammatiazzi
Fraterno abraço.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Estarei a postos. E te desejo o melhor.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Muito obrigado. Me deixa muito feliz.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Gostei demais! Sobretudo do penúltimo parágrafo.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Justamente o parágrafo que traço minha própria voz, vindo de minhas experiências, de outras leituras, de minha síntese pessoal enriquecida por este livro.
Você é muito gentil. Abração pr’ocê.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Nossa, muito bom! em forma e em conteúdo. Daqueles que nos trazem fôlego e força!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Este livro me foi muito importante: rever minha própria trajetória, aprender. E escrever sobre ele me ajuda na síntese.
Obrigada, querida.
CurtirCurtir