André

“Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão”
Cio Da Terra, trecho, na voz de Milton Nascimento.

 

André é confeiteiro ∗ e dono da confeitaria Dois Cafés e Uma Estrela ∗∗. Por trás de um nome singelo, escondiam-se delícias. Ele vai de madrugada para preparar quitutes do dia. Entrega-se ao amassar a massa de pães, tortas, bolos, bolachas, biscoitos. Esmera-se no preparo do lugar – como um templo: flores recém-colhidas de seu jardim dão o toque singular nas pequenas mesas. Abre a porta como se fosse um portal, oferecendo seu oásis para uma cidade movimentada de carros, pessoas apressadas, sirenes, buzinas… e pássaros que disputam os ouvidos em uma praça cheia de árvores.

André era quieto em si. Órfão nos primeiros anos de vida, criado pelo avô. Teve tempo de cuidar dele também. Cinco anos atrás seu avô havia morrido. E a solidão se estabeleceu. Era só, morava só, trabalhava só. Mas não era solitário. Sua casa era cuidada em detalhes. Gostava dos quadros nas paredes, dos enfeites, dos móveis que escolhera. Gostava de limpá-la e arrumá-la. Cuidava do jardim. E seu trabalho como confeiteiro era onde se jogava. Amassar, preparar, inventar receitas, testar ingredientes. Pensar em forma de sabor.

Mário era o avesso. Engravatado, trabalhava em grandes negócios. Seus dias eram recheados de números, estatísticas e cifras. Preocupações, metas, clientes. O estresse era a rotina. A correria. Conjugava os verbos ter, vencer, competir. Gostava desse ambiente tóxico. Só suas noites eram mal dormidas. Dormir era perda de tempo para Mário.

Mário almoçou com clientes, porém o negócio não foi realizado. De saco cheio, saiu perambulando pela cidade. Achou Dois Cafés e Uma Estrela. Da mesa de canto que escolhera, via bem as manobras de André trabalhando numa massa. Observou seu jeito manso e dedicado. Parecia outro mundo. Tomou um café e se arriscou num pedaço de torta. Sua tarde tomou outro rumo. E sem perceber, foi repetindo o ritual nos dias seguintes. Era um frescor. Uma brisa.

Numa tarde, André lhe serviu o café. E, sem que Mário pedisse, trouxe biscoitos de nata. Presente. Ai, os biscoitos desmanchavam na boca. Olhou para André agradecido. Estava feliz.

Assim todas as tardes ganhavam sabores novos. E dois homens se saboreavam.

 

∗como no filme O Confeiteiro, 2018, Israel/Alemanha, escrito e dirigido por Ofir Raul Graizer.

∗∗ nome invertido do singelo filme argentino Uma Estrela e Dois Cafés, 2006, de Alberto Lecchi. 

Léo

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