Alice

“Às vezes não tem mais para onde olhar” Irmandade, série nacional, Netflix.

 

Alice casou cedo, porque grávida. Marido violento, logo mostrou sua força. Ele, trabalhador da construção civil, trabalho pesado, chefe abrutalhado, dinheiro minguado. Descontava na mulher. Ela, garçonete, suportava o bruto do dia a dia em nome da filha e não via alternativa. Ele a humilhava, a chamava de burra, entre murros e desforras. Ela, acreditava nele.

Alice trabalhava duro. Ouvindo conselhos absurdos, tentava salvar seu casamento. Cozinhava algo diferente, preparava a mesa do jantar, colhia flores para esconder a tristeza. Ele chegava tarde e bêbado. Chutava as flores. E, qualquer coisa, a esmurrava. E ela se perguntando o que tinha feito de errado. No dia seguinte, maquiagem para disfarçar, blusa de manga comprida. Assim, enfrentar.

Seu ato mais ousado foi quando ele ameaçou bater na filha. Voou para cima dele. Ele a violentou, exigindo sua obrigação de esposa. Alice procurou uma delegacia. Tentou∗. Mas eram tantas perguntas absurdas, tantas insinuações de concordância com o marido, que, atrasada para o trabalho, desistiu. Resignou-se. 

Certa tarde leu um anúncio de oficina de escrita. Alice sempre escrevia em cadernos secretos. Foi. O grupo era pequeno, eclético, engraçado. A professora fez uma primeira questão: por que escreve? Variadas respostas. Alice tímida e lembrando-se das palavras do marido. Quase desistiu. Na insistência, respondeu: alívio. 

A oficina foi propondo exercícios. Sempre ter um caderninho e ir anotando o que via, sentia, percebia. Alice começou a prestar atenção nos clientes, nos companheiros de trabalho. Nas nuvens, no caminho, no silêncio, na sua casa pequena e fria. Foi escrevendo. Outro exercício seria descrever algo que teria acontecido mudando o rumo da própria história. Alice não tinha dúvida: o dia em que deu para seu futuro marido. A proposta seguinte foi a mais dolorida de escrever: imaginar o tipo de vida que queria. Imaginou. Escreveu. E foi descortinando seu cotidiano áspero. 

O grupo foi se consolidando. Alice percebeu que escrevia bem. Era elogiada. Os impropérios do marido ecoavam sem sentido.

Numa manhã, um homem chora dentro de uma casa pequena. No quintal, folhas e folhas flutuam pelo vento. 

Alguém bate palma no portão e chama por Alice. A vizinha responde:

— “Alice não mora mais aqui”!∗∗

 

Tentei, curta nacional de Laís Melo, 2017.

∗∗Nome de um filme de Martin Scorsese, 1974.

Léo

 

13 comentários em “Alice

  1. Incrível, Léo!
    Fiquei um tempo ausente do blog e, agora, fazendo parte de um grupo de poesia aqui na minha cidade, retornei.
    Ler sobre Alice me fez retornar a sala do grupo. Chegar perto da Alice me fez torcer, me chorar.
    Mas admirar Alice me fez acreditar que as palavras podem me salvar.
    Obrigado

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    1. Tenho a prática de citar outros blogs, principalmente em epígrafes. É a primeira vez que acontece com o meu. A sensação é muito boa. Ainda mais numa questão tão relevante: a violência contra a mulher.
      Cassiane, nossa luta é árdua e desprende muita energia, pois, além de lutar contra a opressão, temos que educar nossos companheiros de trincheira que o mundo livre que queremos só será possível com o fim da opressão, racismo, homofobia…
      Creio que eu e você estamos indo bem, na prática: nossa voz, nossos blogs, tocar na ferida.
      Muito obrigada pela citação e pelo seu post.

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