Boneca Russa

“Queria chegar perto do livro, ele queria. Mas por quê? O que era um livro? Folhas em branco salpicadas de palavras pretas” Raimundo Carrero.

 

” Caro leitor, esperamos sinceramente que tenha comprado este livro, em vez de apenas folheá-lo. Se não comprou, aceitamos que o tenha roubado (…)” (p. 5). Assim os editores nos apresentam [dentro de] um livro/contos ( Casa da Palavra, RJ, 2005). E vão mais longe. “(…) ficaremos satisfeitos com nosso trabalho quando um leitor fechar o livro e abrir em si a vontade de escrever mais um conto” (p. 6). O livro traz laudas seduzindo o leitor para o redemoinho. Rompe a linha imaginária entre escritor e leitor. Boneca russa. Assim como a capa: um livro dentro do livro num “jogo infinito” (João Paulo Cuenca).

Fui procurar no dicionário a palavra mais adequada para o que estava sentido ao ler cada conto. Dicionário – que com palavras explica outras palavras, também num jogo, uma boneca russa. Alumbramento: inspiração, iluminação, deslumbramento. Não. Catarse: purgação, purificação, limpeza. Não. Arrebatar: encantar, enlevar, extasiar. Isto! Senti-me arrebatada por este livro que fala de livro, pois cada conto tem o livro – a escrita, o escritor, o leitor – como fio condutor.

Dentro de um livro encontrei Lygia Fagundes Telles, Verde Lagarto Amarelo. Dois irmãos. Um “Era bonito, inteligente, amado, conseguiu sempre fazer tudo muito melhor do que eu (…) E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento?” (p. 17-12). Outro, “E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido, malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso (…)” (p. 17). Mas… “Não, não é possível (…)” (p. 21). Raiva. Tantas Pernas de Raimundo Carrero é doce. Um garoto descobrindo seu primeiro amor, o livro. “O que significa um livro muito bom? Surgiram as palavras negras. Palavras que brilhavam, amadas – mesmo que naquele instante não soubesse o que era amor” (p. 25). Xico Sá, O Homem Que Odiava Os Livros, e A Mensagem de Luis Fernando Verissimo, dei muita risada. Nomes, Heloisa Seixas – que não conhecia, experimentei a dor, a dor de três nomes. “Três almas destroçadas, três homens vivendo açoitados por terrores, misérias, por fantasias proibidas” (p. 43). E o narrador que se transforma em cada um e em todos eles: “Eu também sou assaltado pelos mais abjetos pensamentos, tenho as noites pejadas de imagens que me torturam”. Fruto de dores, a mesma saída, a escrita.

Gonçalo M. Tavares, angolano radicado em Portugal, mostra O Medo De George Steiner: “Como era ridículo aquilo: NINGUÉM receia um verso. Mas ele sim” (p. 49). Marcelino Freire, absolutamente irônico, trava um duelo entre os vivos e um quase morto – durante o chá – na Academia Brasileira de Letras. Sim, nem ela escapa. “Todo mundo já está de olho na cadeira dele” (p. 54). Antonia Pellegrino quer dar para um autor, em Estética. “Quando eu resolvi dar pro Adam, eu estava apenas pensando em mim” (p. 85). Afinal, “desconfio de quem não pensa putaria o dia todo” (p. 83). O livro como gatilho, porque sexo “exige empenho, técnica, imaginação” (p. 84). 

Assim as páginas – camadas desta boneca russa – vão nos trazendo todos os sentimentos, as emoções, que este amor compartilhado, o livro, é capaz de proporcionar. Como Cardoso, Abjeto Abigeato, descreve tão bem. Ele e o livro, amantes, num ato sexual: “Pois me enamorei, em AGOSTO, dum LIVRO que encontrei por aí” (p. 69). “Pesava um bocado ENORME sobre o meu peito quando deitamo-nos,os dois, no chão da biblioteca” (p. 70).

“Oh, artifícios, flocos de neve e aurora: eu estava AMANDO” (p. 70).

dentro de um livro
Capa do livro

Léo

14 comentários em “Boneca Russa

  1. “(…) ficaremos satisfeitos com nosso trabalho quando um leitor fechar o livro e abrir em si a vontade de escrever mais um conto” (p. 6).
    Assim iniciou seu primeiro?
    Preciso ler esse livro… Adorei as frases retiradas e os contextos dos contos…

    Curtido por 1 pessoa

    1. Escrevi este texto tempos atrás. Creio que o convite ficou na minha cabeça. Quando li um conto de Sérgio Sant’Anna, desabrochou. Este livro, dentro do livro, é uma dessas pérolas… Leia e me conte. Ufa, pensei que a ponte tinha sido rompida. Obrigada!

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  2. Muito bom!!! nossa, achar um livro desses… é como ganhar um presente.
    Que bom se contagia e que bom que escreve, assim nos traz um pouco deste mundo maravilhoso da literatura.
    Que venham mais e mais quintas

    Curtido por 1 pessoa

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