Contos e insultos

“Moro dentro do tema” Ferréz

 

Os adjetivos da literatura me incomodam: culta, popular, marginal. Parecem mais preconceitos de classe travestidos. Aprendo com Balzac que escancara a sociedade burguesa em formação da França do início do século XIX. Aprendo com Ferréz que “traz à luz tudo aquilo que a sociedade colocou na sombra de modo natural, simples e cruel” (Paulo Lins).

Ninguém É Inocente Em São Paulo (Editora Objetiva, RJ, 2006), de Ferréz, desnuda o cotidiano de Capão Redondo – bairro da periferia de São Paulo – através de “contos e insultos”, como ele mesmo os apresenta. Não se restringe à denúncia. Em Fábrica de Fazer Vilão, denuncia, desabafa, e é reflexivo:  ” (policial) É o seguinte, por que esse bar só tem preto? / Ninguém responde, vou ficar calado também, não sei por que somos pretos, não escolhi” (p. 12). Amostra de um país que encarcera e mata pobre e preto. Como em O Plano: “Os pés descalços, sujos como a mente da elite (…) essa porra é ou não é uma guerra?” (p. 15). É lírico: ” (…) eu quero mais, quero regras complicadas, quero traços que tragam uma época que talvez não vivi, mas sinto, quero palavras que gerem vida (…)” (p. 16). Ensina: “Quem gera preconceito é só quem tem poder (…)” (p. 17). “Morar em periferia sempre me prejudicou, esgoto, bebedeira, tiro, e principalmente para se candidatar a algum emprego. É do Capão? Então não emprega” (p. 17).

O conto O Grande Assalto é muito bom. “Avenida Santo Amaro. Às 13 horas. Um homem malvestido pára em frente a uma concessionária de automóveis fechada e nota as bolas promocionais amarradas à porta” (p. 23). É insulto aos preconceitos explicitados pelos que passam pela cena: policial, uma senhora sentada no banco do ônibus, um senhor que passa pela calçada. O homem malvestido retém em si os olhares de uma sociedade doente que já não consegue prever o lúdico. Buba e o Muro Social, o narrador é um cachorro que transita do mundo rico para o mundo do próprio escritor: “um cara muito mal-encarado”, mas, “Toda vez que chego perto, ele logo me dá carinho e pára o que está fazendo para ficar me olhando com ternura” (p. 43). Em Assuntos de Família há desabafo, balanço pessoal, manifesto. “Bênça, Pai, como vai o senhor? Eu ainda estou aqui! Escrevendo contra a elite que a cada dia extermina mais minha gente” (p. 79). Era Uma Vez é nome de personagem: “Antes de chegar ao bar, Era Uma Vez tirou os óculos. O sereno caia e ele não enxergava. (…). Começou a se perguntar por que os seres humanos não podem guardar momentos. (…) As teias pareciam ser feitas de diamante devido ao sereno que nelas caía” (p. 45).

Ferréz escreveu romances como Capão Pecado e Manual Prático do Ódio; livro infantil Amanhecer Esmeralda, e poemas. Compositor e cantor de hip-hop. Trabalhou em padaria, vendeu camisa, vassoura, foi pedreiro. Publicou crônicas na revista Caros Amigos e no jornal Folha de S. Paulo. Tem editora, Nós. É roteirista e documentarista. Suas obras foram lançadas em vários países.

Aposto que esta “elite” nojenta não previu isto, hein, Ferréz? “Sabe pai, tem uns caras que tão me ajudando nessa revolução que tanto quero (…)” (p. 80). “Tá ligado?”

 

Léo

14 comentários em “Contos e insultos

Deixe um comentário