Feliz Ano Novo

“Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico. Você é?’

‘Sou, os meus livro estão cheios de miseráveis sem dentes.'” (Intestino Grosso, Rubem Fonseca).

 

Em 1975  em plena ditadura militar – Rubem Fonseca lançava o livro de contos Feliz Ano Novo (SP: Companhia das Letras, 1989).  O ministro da Justiça, Armando Falcão, mandou recolhê-lo no ano seguinte e foi proibida sua circulação e publicação em todo território nacional: “Li pouquíssima coisa, talvez uns seis palavrões, e isto bastou”.

Talvez o que o ministro tentasse esconder não eram “uns seis palavrões”, mas uma sociedade doente, violenta, miseráveis sem dentes, e um bando de infelizes. 

Não há trégua em Rubem Fonseca. No máximo, frestas. O conto que dá título ao livro, os miseráveis se acham na ocasião do ano novo sem ter o que comer: “Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames (…). Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque. Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.” (p. 13). Porém, cansados de esperar, cansados de se verem sem valor, devolve a violência  respondendo com vingança: “Filha da puta. As bebidas, as comidas, as joias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.” (p. 19). O olhar do narrador não é “de fora” e sim “de dentro”; dá voz aos que não tem; naturaliza a violência. 

Em Corações Solitários, um repórter de polícia de um jornal popular reclama da falta de “um crime interessante”. O editor lhe responde que “Está tudo podre, no ponto, é só esperar.” “Antes de estourar me mandaram embora” (p. 25). Foi contratado pelo jornal Mulher, escrito por homens sob pseudônimos femininos. Ele mesmo escreve as cartas. Ele mesmo as responde. Transforma os clássicos, mitos – que leu –  em fotonovelas. Fazia tempo que não ria tanto. E tem surpresa no final. A violência está implícita. A dor também.

Passeio Noturno Parte I e II, o narrador é da classe média alta. Trabalho entediante. Esposa entediante. Filhos que o veem como fonte monetária. Sua resposta é o tal “passeio noturno” com seu carro que “custou uma fortuna” (p. 61). Violência explícita. A dor transforma-se em sarcasmo. “Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.” (p. 62). Na parte II, em meio à violência latejante, uma fresta: “A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.” (p. 70). Mas, não se deixe enganar, caro leitor. “Apaguei as luzes e acelerei o carro (…) Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão (…) Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse. Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.” (p. 71).

Desfila pelas páginas deste livro, miseráveis, executivos, ex-detentos, campeonato de maratona de sexo, suspense, brincadeira do narrador com o narrado. A defesa dos instintos: “O ser humano é um animal e deve fazer tudo para manter sua pureza de instintos. (…). A vocação do ser humano é ser humano.” (O Campeonato, p. 120-3). A violência de cada um. A violência de um sistema caótico, sem trégua. Respostas vingativas, sujeitos perdidos, matando uns aos outros, sem enxergar o verdadeiro inimigo. “Havia dias em que eu falava mais de cinquenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária (…) assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ter feito. Corria contra o tempo.” (O Outro, p. 87). Nem o escritor se salva: “E você? Sou assassino de mulheres — podia ter dito, sou escritor, mas isso é pior do que ser assassino, escritores são amantes maravilhosos por alguns meses apenas e maridos nojentos pela vida afora —  e como é que você mata elas? — veneno, o lento veneno da indiferença — (…)” (Agruras De Um Jovem Escritor,  p. 100).

Affonso Romano de Sant’Anna diz que “Para Rubem Fonseca, a questão básica não é o crime, a pornografia, e a violência, mas exatamente a desmistificação dos atuais conceitos de violência, pornografia e crime.” (verso da contracapa).

“Você não acha que isto denota uma preocupação mórbida com a morte?’ ‘Pode ser também uma preocupação saudável com a vida, o que no fundo é a mesma coisa.'” (Intestino Grosso, p. 163).

“E uma lágrima seca, feita quase somente de sal, escorregou do seu olho (…)” (O Pedido, p. 110).

Léo

8 comentários em “Feliz Ano Novo

    1. Achei mesmo que iria gostar. Leia, vale a pena. Já leu Hilda Hilst, O Caderno Rosa de Lori Lamby? “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas” Oscar Wilde. “E quem olha se fode” Lori Lamby. Epígrafe do livro.

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      1. Já peguei os dois… Confesso que me assustei com o enredo desse livro da Hilda Hist… Li 100 revogadas antes de dormir e adorei… Queria que meia filhos lessem para entender um pouco como que as meninas pedem fazer algo mas por motivos totalmente diferente do que imaginam… Mas esse, oito anos… Não sei…

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      2. Li em algum lugar que Hilda – cansada de não ser lida em poemas – escreveu pornografia. Tive a impressão que seu intuito era chocar. O que sinto é que sexo é muito tabu. Mas, eu gostei de ler, do choque.

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