“– Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (Machado de Assis, O Alienista).
“Um pensador húngaro chamado Georg Lukács disse no seu livro A Teoria do Romance que o romance é a história de um herói insatisfeito, que busca valores autênticos num mundo degradado (quer dizer, roto, descosido, malfeito)” (Flávio Aguiar, prefácio Murmúrios no Espelho in Contos, Machado de Assis, Editora Ática, 1976). O romance seria uma representação de como conciliar a manutenção de uma sociedade que não representa os interesses da maioria e não cumpre suas promessas de liberdade e felicidade. “Esse mundo ‘degradado’ enfrenta diariamente o problema de ter ou não sentido, de ser ou não absurdo, sem nexo” (Flávio Aguiar).
Entretanto, o herói de Machado de Assis no conto O Alienista, guarda uma peculiaridade: a ironia. Simão Bacamarte, o herói, não está imbuído de “valores autênticos” lutando contra o “mundo degradado”. O alienista busca “louros imarcescíveis”, isto é, louros que não murcham. O “degradado” também está na constituição do herói. Creio que, talvez, esta seja uma marca da escrita de Machado. Esta é a grande ironia, beirando o sarcasmo, o cinismo, o cético. Vejamos.
Dr. Simão Bacamarte é “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas” (O Alienista E Outras Histórias, Machado de Assis, Editora Saraiva, 1957). “– A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo” (p. 19). Debruçou-se sobre os estudos e um “dos recantos” lhe chamou a atenção, “o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral” (p. 20). Sendo um reino ainda quase inexplorado (o conto foi publicado em 1882), viu a chance de alcançar seus “louros”. Não poupou meios e artimanhas para construir uma casa de Orates, hospital psiquiátrico, em Itaguaí, a Casa Verde. Seus ímpetos de estudos fizeram da “Casa Verde (…) um cárcere privado, disse um médico sem clínicas” (p.45). Primeiro recolheu os “desequilibrados”, depois os “equilibrados”, e por fim, a si mesmo. A cidade em polvorosa, viveu sua Revolução Francesa: o terror, a rebelião, e a restauração (títulos de capítulos do conto). Cada vez que Bacamarte tinha uma teoria nova, não se sabia quem seria recolhido: “Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido” (p.49).
O narrador é brilhante, implacável. Apoiando-se em “cronistas do tempo” – já que a narrativa era de “tempos remotos” – vai descrevendo a fala da personagem, o que vai na sua alma, e as fofocas dos “cronistas”. Vemos as camadas do narrado. Um bom exemplo é o herói ao escolher seu recanto de estudo: “Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de ‘louros imarcescíveis’, – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores” (pp. 20-1). A ironia do narrador não poupa sacerdócio, o chefe da rebelião que se rende ao poder, as autoridades constituídas. Nada, nem ninguém, se safa do implacável narrador. Bacamarte, o herói, numa escolha científica de sua esposa, “apta para dar-lhe filhos robustos” (p. 20), vê-se logrado, “D. Evarista mentiu às (suas) esperanças”. Assim o ilustre médico com “olhos acessos da convicção científica” (p. 91), fica sem linhagem, sem herdeiros. Que ironia!
A crítica visível do conto é ao cientificismo, ao determinismo, uma sátira à ditadura da razão, termos muito em voga no final do século XIX. Além de ser muito engraçado, este conto cabe muitas reflexões. Se a espinha dorsal da realidade é a infelicidade geral, social e organizada, como diz Flávio Aguiar, Bacamarte lida com um conceito de razão alienado, no sentido marxista. Para este médico, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades” (p.36). “– Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, (…), é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura”. Como ter o “perfeito equilíbrio de todas as faculdades” numa sociedade organizada na infelicidade? Quem pode decidir – de fato – os limites da razão num mundo degradado?
A ciência a serviço das vaidades é uma ciência alienada. Lida com a humanidade e a natureza como mercadoria, objeto. Busca o poder e não a compreensão da realidade. Ciência coisificada.
O alienista, com este conceito de razão desprovido de conteúdo social, vendo a doença (objeto) e não o humano (sujeito), se utilizando da ciência coisificada, é alienado.
Léo
É uma pena que escritores como o Machado — e o Lima Barreto, e o Oswald de Andrade, e o Manuel Antônio de Almeida… — tenham sofrido tanta mutilação à ceifa da obrigatoriedade escolástica brasileira. Se ao menos fossem lidos sossegadamente.
Abraços para si,
P.
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P.R.Cunha, minha experiência foi diferente: a escola me abriu as portas para a leitura, tive bons professores. Mas, creio, que o que você diz, é o geral. Ainda bem que tem pessoas, como nós, dando outros ares aos romancistas, poetas…. Fiquei feliz pelo comentário. Obrigada!
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Vc não acha que é possível fazer uma leitura do conto a partir das premissas da Revolução Francesa?
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Fiz um pequeno comentário com relação aos nomes dos capítulos e suas ligações com a Revolução Francesa. Mas uma leitura mais afiada com ligação direta, teria que estudar. É muito interessante.
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Na próxima vez que eu for ao médico, imprimirei esse texto e o deixarei (discretamente) sobre a mesa do especialista.
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KKKKKKK
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Machado e sua permanente atualidade.
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Estamos sempre aprendendo!
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A propósito de Machado.
https://jorgesapia.wordpress.com/2016/11/11/a-esquerda-da-praca-e-a-igreja-do-diabo/
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